A Persistência da Pintura – Núcleo Contemporâneo. Livro 4. Pg 116

Paulo Sergio Duarte

Rio de Janeiro, Brasil
Publicado pela Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul para a V Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, Brasil, 2005

 
 

A obra de José Bechara foi, no Brasil, um dos primeiros indícios de que uma determinada festa do mercado encontrava seus limites, já havia fabricado seus “grandes nomes” que podiam restar por mais tempo. A festa da era Reagan, que aqui se confundia com o ápice da abertura política (a transição da ditadura para democracia) e que na arte se materializava com algo muito diferente: a venda de qualquer coisa desde que fosse pintura sobre tela, seguindo uma determinada moda importada, como sempre acontece nas operações dominadas pelo raciocínio mercantil. Comemorava-se o “fim” das instalações e da arte reflexiva – aqui, neste país, confundida com a arte conceitual – e o elogio da “volta à pintura”. Mas que pintura voltava? Pelo que se registra, nenhum dos grandes pintores havia trocado seu medium. E uma série de jovens começava a fazendo pintura sem participar da festa da chamada geração 80. De mais de duas centenas de “pintores” não restou pouco mais de uma dezena digna desse nome. Filtro rápido, não precisou nem mesmo da velha senhora História para fazer a seleção no grande blefe. A coisa tão mal armada, um espetáculo que não soube diferenciar-se do campo do show business não podia ter outro fim, apesar da força de mercado que o revitaliza constantemente.

O trabalho de Bechara apareceu nesse contexto discretamente, uma pintura contemporânea que compreendia a dilatação do campo pictórico para além da cozinha do ateliê e dos segredos dos pigmentos e pincéis, escolhendo tons graves sem oposições cromáticas fortes. Tudo contra a maré em voga. Não apostava na eloqüência efusiva das figuras e cores fartas que vinha para substituir o velho exotismo em um neopapagaísmo fadado a ter sucesso no mercado internacional e, como conseqüência, também aqui no país dependente da confirmação externa de seus próprios valores. Explorou um processo: no lugar dos pigmentos, a oxidação provocada da lã de aço sobre lona. Mas não um tecido grosso qualquer. Escolheu o encerado de caminhões de carga, desde que muito usados, já velhos: essas suas “telas”. O tempo da superfície já era dado no próprio suporte, uma história já era transportada para o ateliê antes mesmo de sua transformação. Temos um ready made na lona, como pele sofrida na proteção das cargas ao longo das estradas, e o outro tempo da oxidação do ferro produzida pelo artista. As cicatrizes dos remendos não são mascaradas, partes do trabalho surgem aqui e ali como pequenos acontecimentos na superfície, tanto nas grandes superfícies monocromáticas quanto naquelas organizadas pela geometria das listas. A bem-sucedida obra de Bechara, além do prazer que propicia para tantos que a colecionam, indicou, em um momento preciso, que outra pintura já existia, bem antes daquela que ele apresentava e colaborou para a retomada por um determinado gosto.

 

Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, professor da escola de Artes Visuais do Parque Lage e das Faculdades Candido Mendes, Rio de Janeiro Brasil. Autor de diversos livros destacando-se Anos 60, Transformações da Arte no Brasil .