Deambulações acerca das qualidades…

Paulo Reis

Lisboa, Portugal, 2010.
Em Como piscada de Vagalume, publicado por Editora Réptil, Rio de Janeiro, Brasil, 2010.

 

Os homens só se compreendem uns aos outros na medida em que os animam as mesmas paixões. (Stendhal) [1]

 
Quando da publicação da entrevista de Bechara na revista Dardo,[2] “Afinal um homem com qualidades”, com um título que contraria o “sem qualidades” do livro de Robert Musil, considerava que um artista se mede pelo seu esforço prometéico em revelar verdades místicas como quis Bruce Nauman em sua obra-manifesto. Pela persistência e pela inteligência em transformar algo empírico, o pensamento, em habilidade artística reconhecida, a obra, é que se pode medir a dimensão de um artista. Afinal, uma verdadeira inteligência reconhece-se muitas vezes por qualidades não aparentes ou ainda por aquilo que denominamos de um sutil toque de teimosia inteligente. Essas questões assaltaram-me a mente quando estive ano passado diante da bela exposição que juntava obras de Cézanne e Picasso.[3] O confronto em que Picasso reverenciava a maestria de Cézanne ao copiá-lo, às vezes literalmente, outras vezes referencialmente, deu-me a certeza de que a teimosia artística por vezes vale a pena. Escrevi imediatamente a José Bechara quando voltei ao hotel, em êxtase depois daquela revelação, e eis a troca de e-mails.

 

Querido Bechara, essa demora toda em responder-te tem os seus motivos. Meus e os alheios a mim. Todavia quero esclarecer que não pensei em fazer uma entrevista contigo tout court, mas ir trocando ideias sobre o ofício da criação. Eis, porque te escrevo de um hotel, chegado de Arles, de Nîmes e de Avignon finalmente ao meu destino final que é Aix-en-Province. A razão desta viagem não foi de turismo gastronômico, nem para ver touradas, apenas para ver a mostra de Picasso e Cézanne que o Musée Granet de Aix-en-Province dedicou a ambos. Curioso que são lugares que já havia estado mas que nunca me passou pela cabeça como a arte pode marcar um lugar. Ipso facto é que a mítica de Arles só existe porque Van Gogh deu-nos a conhecê-la e já não sabemos mais distinguir a da cidade real à da cidade pintada pelo holandês.

Cézanne promoveu uma revolução que abalou a arte mundial aqui nesta pequena cidade do sul da Europa, mudou a arte por dentro e a cidade para fora dos seus muros… Esta mostra, para além de espetacular como conceito e de ter ali uma curadoria de muitos anos de pesquisa, serviu-me para esclarecer ainda mais a firmeza com que alguns artistas – e seus propósitos – são forças irremediáveis da natureza humana. Cézanne foi nove vezes recusado nos salões em Paris e persistiu em sua pesquisa pictórica. É, como diz o ditado, “a vingança é um prato que se come frio”. Dali, o artista marcou não somente Aix-en-Province mas também transformou toda a arte que viria depois dele. Que tenacidade admirável enfrentar aquelas subidas da Montanha Victoria para ver os sulcos da pedra branca a receber fachos de luz que modificam a paisagem a cada minuto! Cézanne transformou essa experiência física da paisagem em fenomenologia da cor, da sensação! Estive na montanha e todo meu pensamento estava em Cézanne. Eis a força da arte! Essa força fez com que Picasso, em busca da verdade cezanniana, comprasse o castelo que fica em frente à montanha. Para lá, diante da montanha de Cézanne, leva sua coleção de arte composta, sobretudo, por Cézannes e Matisses […]

[…] Picasso sempre disse que seu pai era Cézanne, pai de todos os modernos. Numa de muitas das suas frases afirma que a busca do verdadeiro artista é aquela que empreendeu Cézanne e que a tomou Van Gogh. Todo o resto seria falso para um verdadeiro artista. Exatamente nessa exposição havia alguns desenhos primorosamente simples de Picasso a imitar as paisagens de Cézanne. Uma pequena rua “aixois” com angulações de casas e telhados dá-nos a sensação de transporte para outra dimensão, para um mundo onde o olho e o espírito fundem-se, como notou Bachelard a respeito de Cézanne. Este buscou escavar a planaridade das paisagens, já Picasso reforçava as angulações existentes ao reler Cézanne. Tão simples, tão belo, tão potente […] É um encontro de paixões como bem notou Stendhal […] Lembrei-me muitíssimo da tua escultura da casa feita em desenhos simples – carimbos e aguadas – onde a imagem sólida da casa flutua no espaço imaterial, como algo verdadeiramente leve, contrariando a sua natureza. É, por assim dizer, a casa tua montanha? Por que ela repete-se ao lado de uma dezena, centenas de desenhos que justapostos lado a lado parecem uma animação fílmica, dando vida a algo sólido que flua no espaço, como uma bolha de sabão?[4]

 

Motivado pelas minhas especulações, a resposta do artista pareceu-me ainda mais emocional que as minhas:

 

– Olá Paulo […] com uma introdução como essa à sua pergunta, nem sei o que te responder. Sua descrição é cinematográfica e romântica, e assim qualquer resposta minha não tem graça. Desse modo, modestamente, e me referindo ao final de sua pergunta, a casa – e tudo que ela representa para o exterior assim como para o interior –, é minha montanha sim. Tem sido há dez anos e está presente na minha produção escultórica, assim como nos desenhos e, nestes, contém o conflito a que você se refere: de um objeto sólido, física e psicologicamente, que flutua sem direção. É isso mesmo e é o desenho mais simples, direto e possível. Para mim é como escrever sobre as impossibilidades do dia a dia em espaços que se vai inventando. Mas não é exatamente em bolhas de sabão (apesar de ser esta, que você propõe, uma ideia mais bonita) que penso ao ver pequenas casas que flutuam. Penso mesmo na falta de um lugar para elas. Como se não houvesse um terreno ao qual pudessem se firmar. Sempre penso num trecho de um poema de Julles Supervielle que diz mais ou menos o seguinte:

Procuro em cofres que me cercam brutalmente

Pondo trevas de pernas para o ar

Em caixas profundas, profundas,

Como se já não fossem deste mundo.

[…] Li isso há cerca de seis ou oito anos e desde lá penso nas impossibilidades de um estado de coisas que “põe trevas de pernas para o ar”. Isso foi muito inspirador para mim. Me animou a produzir A casa e depois, nos desenhos, encontrei um campo em que podia explorar melhor isso.

 

Nossa troca de correspondências começou numa discussão sobre a prática do desenho e evoluiu para algo mais metafísico:

 

– […] Caro José Bechara, para começo da nossa conversa temos que nos distanciar da discussão dos estilos invocados por Wölflin.[5] Creio que, no momento em que foi escrito, o autor olhou sobre a produção do passado cuja preocupação era promover a distinção entre Michelangelo e Rafael. Penso que na modernidade as práticas pictóricas e lineares fundiram-se no conceito do objeto e aquele livro hoje em dia seria impossível de ser escrito. A quem interessa se o artista é pictórico ou linear? Penso que naquela altura essa distinção permitiu que se tornasse possível distinguir o modelo de atuação de um artista do outro. Hoje é impossível. A prática do desenho era a sustentação, “o esboço” para uma obra final. Vê-se que havia um entendimento de procura para um destino final – a pintura, neste caso. A afirmação modernista do artista liberto de qualquer academismo – quer formal, quer conceitual – foi central para a autonomia do desenho, afirmando-se definitivamente, haja vista que um desenho de Picasso tem tanto valor quanto uma pintura. Penso sempre que um desenho nunca é uma busca por algo fora de si, mas em si, já que exige uma grande concentração do artista, não achas? Sendo você um pintor, que manteve esta prática do desenho solitário, privado, íntimo mesmo e que vem desenvolvendo mais incisivamente outras práticas como a escultura e a instalação, somente agora o desenho passa a ter relevância junto com as outras práticas e meios a ponto de expô-los agora como autônomos? Como se deu essa perspectiva de abertura, é um caminho para mostrar a complexidade da sua obra?

 

– Paulo, começando pela última parte de sua pergunta, obrigado pelo “caminho para mostrar a complexidade da sua obra”. É só trabalho diário. Minha produção investiga a pintura, a escultura, o desenho e ainda tenta conjugar esses meios com experiências visuais esperando que o objeto plástico resultante, por exemplo uma escultura, implique uma ideia para a pintura […] O tempo entre eles não é medido pelas ferramentas conhecidas para fazê-lo. É um tempo próprio das escolhas que faço enquanto penso no que estou produzindo, ainda que isso não seja claro para mim. Me dei conta, recentemente, e essa é uma das razões para a organização e publicação deste livro, de que os desenhos que tenho produzido nos últimos vinte anos são, ao mesmo tempo, carta sobre as coisas que tenho feito e obra autônoma. É nesse ponto em que me apoio para reunir o conjunto deste livro que separo em diferentes categorias; uma delas a de desenho de projeto, desenho este a serviço de uma obra final, problema que você também aborda. Bem, mesmo estes guardam autonomia, e essa dupla qualidade é uma questão que aparece no livro. Agora, o que nos permite reconhecer essa dupla qualidade não está claro para mim; tudo bem que a pista seja que ”a partir do modernismo e etc. e tal”. Durante muito tempo produzi desenhos (ou se quiser, desenhei) no que julgava que fosse um campo separado de minha produção diária e que no começo, logo ao deixar o Parque Lage, era dedicada à pintura. E fazia isso, digamos, silenciosamente, como se ”escrevesse”, “anotasse“ ideias e enquanto o fazia, pensava. Isso era para mim, para mais ninguém, para mais nada que não fosse simplesmente desenhar […] e isso me oferecia, como oferece, muita liberdade. E só há alguns anos adquiri confiança em poder investigar o desenho, e em vasculhar minhas possibilidades nesse campo. Para terminar, não acho que seja um caminho para mostrar, decifrar, as relações e cruzamentos da obra, mas é um canal de aproximação ao conjunto da pintura e da escultura.

 

Penso que a obra do artista José Bechara, como escreve Fátima Lambert, “desenvolve-se em torno a conceitos precisos que traduzem a centralidade da arte relativamente à vida, numa acepção, ousaria dizer, quase de ‘sobrevivência’. Assim, emergem as produções relativas à série Casa e, a título de exemplo, as peças de pintura, intituladas Cadernos rápidos, Mercúrio ou Paramarelos. Habitar, estar em […], por um lado e, por outro, afirmar os territórios abstrato e cognitivo, através da escrita, do desenho e de objetos que a podem acolher, são domínios privilegiados que sintetizam a coesão da linguagem plástica e do pensamento do autor (porque artista) brasileiro”.[6] Uma espécie de expansão do campo já expandido que são as suas práticas da escultura, do desenho, da pintura e da instalação. A obra de arte hoje vive um sintoma de expansão continuada que podemos notar em artistas como Franz Ackerman, Tobias Rehberger e José Bechara ao evocarem um dispositivo randômico e deambulatório entre a escultura, o desenho e a pintura.

 

Nicolas Bourriaud escreveu, num breve ensaio intitulado “A forma relacional”,[7] que a atividade artística constitui não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais. O crítico evoca a noção de tempo e espaço para o entendimento da obra de arte num mundo global. Relembra ainda que a tarefa do crítico consiste em estudar a obra no presente, trocando informações com os artistas, estudando as motivações deste e intermediando com o público. Borriaud queixa-se de certo esgotamento da crítica moderna que esvaziou o conteúdo dos critérios de julgamento estético, recorrendo ao julgamento legado do passado e que continuamos a aplicá-lo às práticas artísticas atuais. Um contrassenso pois “o novo não é mais um critério, a não ser entre os detratores ultrapassados da arte moderna que retêm do detestado presente apenas aquilo que sua cultura tradicionalista lhes ensinou a abominar na arte do passado”. Para criar ferramentas mais eficazes e pontos de vista mais adequados, é importante apreender as transformações atualmente em curso no campo social, captar o que já mudou e o que continua a mudar. Como entender os comportamentos artísticos manifestados nas últimas duas décadas e seus respectivos modos de pensar, a não ser partilhando da mesma situação dos artistas, pergunta Bourriaud. Eis uma questão que somente no ato da experiência compartilhada é que é possível chegar-se a uma possível resposta. Aliada a uma teimosia inteligente é necessário que o artista experimente seus devaneios artísticos, flutue como uma bolha de sabão ou que ponha “trevas de pernas para o ar, em caixas profundas, como se já não fossem deste mundo”.

 

Paulo Reis

Lisboa, janeiro 2010

 

 


[1] C’est que les hommes ne se comprennent qu’à mesure qu’ils sont animés des mêmes passions Stendhal. Oeuvres de Stendhal‎, v. 28.

[2] Dardo, nº 9. Santiago de Compostela: Dardo ds, 2008.

[3] “Cézanne – Picasso, deux maîtres face à face“. Musée Granet, Aix-en-Province, França, 2009.

[4] Troca de e-mails com o artista.

[5] Heirich Wolflin. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes.

[6] Maria de Fátima Lambert. Em José Bechara – essa “cinza das horas”. Disponível em www.josebechara.com

[7] Nicolas Bourriaud. Esthétique relationnelle. Dijon: Les presses du réel, 1998 (Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009).