José Bechara: Processos e Desvios

Luiz Camillo Osorio

Rio de Janeiro, Brasil
Em A Casa, publicado por Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 2006

 
 

Em uma primeira olhada, este projeto A casa de José Bechara parece um desvio na rota da sua trajetória artística. Assumir qualidades escultóricas, deixando de lado a superfície oxidada e encrespada de suas lonas, sugere um deslocamento de linguagem bastante radical. Mas não creio que isto de fato seja assim. O que pretendo com este pequeno texto é destacar, para além deste desvio, uma mesma direção poética de fundo, em que novos materiais e outra intensidade plástica foram acrescentados sem perda da coerência interna da obra.

Alguns elementos norteiam a ação criativa de José Bechara. Ela combina apropriação, intervenção e anseio formal. Cada um destes elementos tem a sua especificidade, mas atuam segundo uma medida que é determinada pela necessidade de cada trabalho. De acordo com o que já vem incorporado na lona depois de anos de uso no caminhão, a intervenção do artista responderá a uma vontade de forma que surgirá no interior da própria ação. Mesmo tendo sua formação e seu olhar vinculados à tradição pictórica, não é o ofício da pintura o que lhe motiva no dia-a-dia do ateliê. A pintura é o horizonte de sua poética; é o lugar a partir do qual ele pensa a arte, mas não condiciona a necessidade de expressão da sua obra, não lhe basta como operação criativa. Por outro lado, suas operações não partem de uma sensibilidade escultórica. O primeiro escultor que eu o vi comentar com entusiasmo foi Medardo Rosso, talvez o mais pictórico dos grandes escultores modernos.

De certo modo, a realização da pintura, seu sacerdócio cotidiano, exige uma paciência e uma contenção que não combinam com a natureza física da sua ação plástica nem, tampouco, com o seu ritmo existencial acelerado. É uma urgência impulsiva que, todavia, não nega o tempo de maturação necessário ao fenômeno artístico, não acelera o vir à tona do acontecimento visual. O tempo de decantação da lona no processo de oxidação em vez de se opor ou velar as ações plásticas anteriores irá potencializá-las na forma conquistada. São ações que envolvem um embate corporal de maior envergadura do que a da mão e do pincel, típicas da pintura. Negociar as lonas com os caminhoneiros, trazê-las para dentro do ateliê, abri-las, olhá-las, escolher os acontecimentos interessantes, cortá-las, iniciar o processo de oxidação, esperar, interferir, parar, interferir novamente… todo este processo é parte da obra, todo ele fica contido no interior dos trabalhos.

Podemos ver nesta necessidade física de sua operação poética que não foi nenhuma razão externa, casual, que o fez largar, no começo dos anos 90, as tintas e a pintura tradicional para se ocupar com as lonas de caminhão e as oxidações. Este encaminhamento para as lonas, para além da pintura estrito senso, foi uma necessidade intrínseca ao seu método criativo, ao ritmo interno do seu estilo. Seria também o caso de sugerir, observando as obras a posteriori, que a maior fisicalidade assumida pelo seu processo criativo foi implicando uma maior concentração de matéria e sua dilatação para além do plano. Os chumaços de palha de aço acumulados na superfície foram se tornando focos escultóricos que surgiam no processo de oxidação e se lançavam em direção ao espaço real.

Esta apropriação de coisas comuns, como lonas de caminhão inicialmente e móveis nesta última fase, interessa ao artista na medida em que eles já carregam uma potencialidade plástica, um conjunto de ocorrências que é selecionado e transformado a partir de uma intervenção específica. Esta intervenção pode ser a oxidação ou o acúmulo precário e desequilibrado dos móveis na busca de uma forma concentrada. O que menos importa é se estamos diante de uma pintura, escultura ou instalação; ambigüidade que fica mais evidente nesta série com móveis em que há momentos mais instalativos, como a que vimos na exposição do Paço Imperial, em 2003, ou mais escultóricos, como a do Instituto Tomie Othake, em 2004. Nos dois casos, a relação com a Casa fica apenas indicada, sugerida, de certo modo velada sob ações de acumular, concentrar e expurgar que constituem as obras. É um work in progress que a cada atualização assume uma maior ou menor explicitação da referência, apostando na tensão – e é isto o que mais lhe interessa – entre esta referencialidade sugerida e a energia plástica formalizada.

Em um texto muito citado, escrito no final da década de 1950, Allan Kaprow nos faz pensar sobre o legado de Jackson Pollock como indo além das questões propriamente pictóricas. E estas, as questões pictóricas, também podendo ser pensadas para além do suporte tradicional da pintura. As contaminações entre suportes e meios já vinham se desenhando desde as colagens cubistas e as assemblages surrealistas, mas será com Rauschenberg, Dubuffet e os happenings da virada para os anos 60, que elas de fato ganharão estatuto quase canônico. Como escreveu Oiticica na entrada de seu penetrável Tropicália: “A pureza é um mito”. Segundo Kaprow, Pollock deixou-nos no momento em que devíamos começar a refletir sobre o espaço e os objetos de nossa vida cotidiana e mesmo espantar-nos com eles: desde nossos corpos, roupas, casas, até a extensão da Rua 42. Não contentes com a sugestão pela pintura de nossos outros sentidos, vamos usar as substâncias específicas da visão, som, movimentos, pessoas, odores, tato. Objetos de toda sorte são os meios da nova arte: tinta, cadeiras, comida, luz elétrica, néon, fumaça, água, meias velhas, um cachorro, filmes e mil outras coisas que a geração atual de artistas descobrirá . A possibilidade de descobrir novas materializações para o fenômeno poético foi dissolvendo as formas a priori de categorização da arte, abrindo um campo experimental onde liberdade e qualidade assumiram outras perspectivas e relações. O que menos importa é se temos segurança em relação ao fato de tal coisa ser ou não arte, mas sim que possibilidades de sentido se desdobram a partir de uma determinada formalização e de que modo elas se deixam disseminar e multiplicar.

Nas Lonas ou na Casa há uma apropriação de objetos mundanos e uma repotencialização plástica deles através da intervenção e do deslocamento propostos pelo artista. Nestas várias etapas das Casas, do Faxinal ao MAM e as outras que virão – seja com desenhos, fotos, esculturas ou instalações –, Bechara nos fará pensar sobre a materialidade das coisas e suas rematerializações simbólicas, nas quais a memória das casas reais e as possibilidades abstratas de formalização coexistem no ato da experiência poética. Haverá sempre uma tensão entre ver uma casa e ver um volume escultórico, entre referência e forma abstrata.

A seleção de uma lona de caminhão, a operação de troca e/ou compra com o caminhoneiro, a disposição dela no ateliê, a escolha das interferências, manchas e rasgos acumulados na superfície e o corte deste pedaço, tudo isso é feito pelo artista e, como disse, é parte da operação artística. Em seguida, começa a oxidação e o início de uma intervenção formalizadora na obra. Dada uma memória visual já existente, ele vai então organizar um conjunto de novos acontecimentos que se integrarão a ela, dando-lhe uma outra potência, reinventando-a como forma pictórica.

Neste processo, a forma vai se constituindo a partir de ações combinadas de extração e acumulação, de pôr e retirar matéria, sintonizando o tempo de ação das oxidações com a textura e a cor desejadas. A estruturação geométrica, esquadrinhando a pulsação informal da ferrugem e dos tufos de palha de aço, pretende esfriar o caráter dramático, sobrepor a ordem ao caos. Mas o caos, felizmente, resiste.

Entre a produção das Lonas e das Casas – sem que este “entre” implique ter deixado de fazer uma coisa para fazer outra, pois as primeiras continuam a ser feitas até hoje – houve a experimentação com as peles de bezerros, os edredons e uma série de tentativas “frustradas” com a oxidação de colchões. Neste fracasso já estava sendo germinada a operação das Casas, a apropriação de coisas que estão no espaço íntimo da habitação e não nos caminhões e estradas. Muitas vezes, são as experiências malsucedidas de ateliê, que não chegam a conquistar estatuto de obra, como foi o caso com os colchões, que abrem novas perspectivas em uma poética. Por menos consciente que seja não deixa de ser curiosa esta passagem daquilo que é pura exterioridade, que vai acumulando acontecimentos plásticos no embate direto com os elementos da natureza – chuva, sol, vento, fuligem, poeira etc. –, para estes colchões e edredons, e posteriormente os móveis, que são o abrigo de nossa intimidade, que acumulam vestígios de uma memória privada.

A desdramatização que nas lonas vinha pela estruturação geométrica das oxidações na Casa existe através da fachada ortogonal do volume exterior, suas janelas e portas e, também, pela inserção de um mobiliário especialmente fabricado com compensado claro, de desenho econômico, sem marca ou mistério guardado na superfície da madeira. Esta ambigüidade entre ser casa e ser volume escultórico é rebatida por esta outra entre passado e presente, entre memória e matéria. Na construção de sua Casa, o que é íntimo é expelido, expulso, posto para fora. Nas Lonas, o que é marca do mundo e da natureza externa vai ser recolhido e absorvido no interior da tela. Neste jogo entre dentro e fora, intimidade e exterioridade, apropriação e extração, formalidade e informalidade, desenvolve-se a estrutura poética do artista.

As várias etapas deste processo da Casa, ou melhor, suas muitas atualizações apontam para um trabalho em progresso, para uma ação que se multiplica e se reinventa continuamente. Tudo começou no programa de residência de artistas em Faxinal do Céu, quando em 2002 uma centena de artistas conviveu nesta vila abandonada por duas semanas, com um programa bastante aberto e intenso de atividades. Não existia a obrigação de fazer um trabalho, mas as coisas estavam acontecendo por toda a parte. Bechara resolveu cuspir a própria casa onde passara estes dias com a família que o acompanhava na ocasião. As fotos são de sua mulher, a atriz Dedina Bernardelli, envolvida direta nesta explosão. Ao contrário do Merzbau de Kurt Schwitters, que levava para a casa detritos apanhados na rua transformando-a em uma assemblage em processo que acabaria por expulsá-lo com a família daquele lugar, na obra de José Bechara, refiro-me aqui ao trabalho específico em Faxinal, é o que está dentro que vai para fora, expelindo a intimidade. A Casa de Bechara é toda posta para fora enquanto a de Schwitters é toda interiorizada. Obviamente, não há aqui a radicalidade do artista alemão, pois ele punha de fato sua vida privada em xeque, enquanto em Bechara trata-se de um momento de experimentação, de catarse da intimidade, que se opera posteriormente nas formalizações da obra nos museus e não no refazer constante dos espaços da vida.

Em seguida, com as exposições do Paço Imperial (2003) e do Instituto Tomie Othake (2004), a abstração escultórica faz-se sobrepor à referência concreta da casa. O que o teria levado nesta direção de uma rasura da referência? Creio que uma aposta, que é sua desde a fase das Lonas, na necessidade de a arte manter-se como um campo de experimentação formal livre das condições impostas pela realidade. Há uma vontade de forma que atravessa as apropriações e intervenções do artista, correndo o risco de se tornar excessivamente formalista quando a surpresa dos materiais fica submetida ao domínio técnico das interferências. Daí a necessidade dos desvios, das investigações sistemáticas com outros suportes e materiais. Um dos pontos fortes que acompanha tangencialmente o projeto das Casas é a presença constante dos desenhos. Vemos aí um gesto solto e impregnado de escala, sugerindo deslocamento em direção ao monumental, que se manifesta nas ações escultórica e instalativa presentes desde Faxinal.

Ao que tudo indica, será neste trânsito entre várias possibilidades  de atuação plástica, nos deslocamentos recorrentes do plano para o espaço, que seguirá a trajetória poética do artista. Sem abandono de territórios já conquistados e equacionando a cada nova experimentação um equilíbrio possível entre o precário e o formalizado, a obra de José Bechara vai se desenvolver atenta a sua necessidade de intervenção no mundo, apropriando-se de sua materialidade bruta e prosaica. As Lonas e Casas ainda prometem novos desvios.

 

 

Luiz Camillo Osório, crítico de arte do jornal O Globo, professor de estética da PUC-Rio e da UniRio, curador da coleção do JP Morgan no Brasil e autor do livro Flávio de Carvalho (Cosac & Naif, São Paulo, 2000).