Material Imaterial

Profª Drª Beate Reifenscheid

Koblenz, Alemanha, 2015.
Texto escrito para o catálogo da exposição “Squares and Patterns”, de José Bechara, em Koblenz, Alemanha, 2015-2016. Tradução de Lis H. Moriconi.

 

Nos últimos anos, José Bechara tem se dedicado continuamente à deconstrução de suas pinturas e trilhado sempre novos caminhos. Bechara se notabilizou como pintor construtivista. Suas raízes estão presentes tanto no avant-garde europeu – no movimento De Stijl lançado por Piet Mondrian, no grupo Cercle et Carré de Kandinsky que uniu diversas correntes da Paris dos anos 30, entre elas a dos mestres da Bauhaus; quanto no Construtivismo do pós-guerra brasileiro através de seus principais protagonistas Lygia Clark, Hélio Oiticica, entre outros. Há uma variedade de linhas que conectam esta produção com a Europa, especialmente a Alemanha e a França.

“Os paralelos entre o grupo alemão e o movimento neoconcretista brasileiro – a quem pertencem Lygia Clark e Palatnik – podem,” como enfatiza Van den Valnetyn, “comprovar o desejo e a vontade de superar as linguagens artísticas predominantes: a Art Informel na Europa e a Arte Concreta no Brasil (…) A Geometria Sensível claramente presente nos trabalhos de arte concreta de Lygia Clark e Hélio Oiticica pode ser encontrada facilmente no trabalho de todos os brasileiros que ousaram avançar pela abstração geométrica, e que exerceram uma forte influência na arte brasileira e latino-americana na primeira metade do século 20, incluindo até mesmo aqueles artistas que rejeitaram este lado mais sensível.”[i]

Paris foi inicialmente importante caldeirão artístico até o deflagrar da segunda guerra mundial, condição que ainda perdurou por alguns anos ao se tornar palco da mistura das correntes artísticas russas, alemãs, e norte-americanas, que com o início da década de 50 também incluiu influências da Ásia. Acima de tudo, porém, foram o artista suíço Max Bill – que expôs no Brasil na década de 50 – e os artistas Heinz Mack, Günther Uecker e Otto Piene – ativos na Alemanha, responsáveis por ZERO, movimento de rápida expansão internacional – que tiveram um papel importante no desenvolvimento da arte brasileira. Neste processo houve um encontro entre os interesses artísticos de uma emergente linguagem formal concreta e construtivista com os dos artistas ativos na arte cinética.

O artista brasileiro mais importante na arte cinética é Abraham Palatnik, pioneiro na criação de objetos móveis. Mas no princípio a arte cinética brasileira enfrentou muitas dificuldades antes de obter o reconhecimento. Lúcio Fontana, que produzia no mesmo período que Palatnik, foi um caso aparte, conseguindo chamar consideravelmente mais atenção na Europa com o seu “concetto spaziale”. Mesmo assim, a década de 50 estava imbuída de vasto otimismo – inspirado na emergência econômica do Brasil – que exerceu um efeito transformador na arte. As extraordinárias realizações de Hélio Oiticica e Lygia Clark são seu uso dinâmico e lúdico de forma, área e espaço penetrando formas geométricas abstratas que, à despeito de toda a racionalidade, lhes confere algo de leveza e flutuação poética. Lygia Clark entendia sua obra como objetos sensoriais, praticamente organismos vivos “que recebem forma e significado quando entram em relação como o corpo do espectador.” Neste processo é extremamente importante que seus objetos sejam manipulados no sentido mais verdadeiro da palavra: que sejam tocados e mudados. O espectador experimenta uma sensação a uma vez simples e fascinante ao alterar pessoalmente uma obra, mudando sua forma com pouquíssimos movimentos. “(Clark) inclui até mesmo a experiência da passagem do tempo em suas concepções interativas. O resultado é que sua arte se torna uma experiência subjetiva dentro de um arranjo contextual. Dentre outras formas de expressão, ela comunica essa aspiração ao chamar suas obras de “propostas”[ii] e seus espectadores de “participantes”[iii].

José Bechara retoma pontos diferentes destes desenvolvimentos complexos em dois aspectos especialmente marcantes: sua preferência pela geometria e o grande interesse em processos, o último podendo eludir à sua influência. No começo, tal como um pintor clássico, pode-se à primeira vista ter a impressão que ele usa uma linguagem de economia de formas obedecendo à Arte Concreta no sentido mais amplo do termo. Contribui para isso o uso de imagens quadradas, as rigorosas formações de linhas, a oscilação pendular entre formas pictóricas livremente abstratas e geometricamente atravessadas por linhas. Mas também é evidente que Bechara se manteve sempre atento à penetração do espaço e na compreensão de suas dimensões na percepção. No seu trabalho tanto o concreto quanto o não concreto se baseiam diretamente em possibilidades de perspectivas. Ver suas esculturas sempre envolve um desafio para ir além dos aparentes limites de suas obras.

Bechara amplia esse ímpeto ao aplicar de modo crescente, cores, pigmentos e partículas de metal às telas que mudam com a passagem do tempo, um processo que subjuga diretamente a aparência de suas obras. O metal e a tinta criam um amálgama um com o outro. Partículas de ferrugem se precipitam e aderem à superfície. A aparência e a sensação tátil transmitida pelos seus trabalhos oscilam entre a racionalidade precisa das listras arregimentadas em estreita proximidade umas às outras, as superfícies claramente medidas, e o poder virtuoso de combinações de cores que evocam espaços novos. A textura da pintura e suas superfícies ferrosas gera uma força contundente evidenciando a ação do tempo e o processo de envelhecimento, repleto de cores aveludadas.

Há uma correspondência entre os rastros da passagem do tempo e o potencial de expansão presente neles, fundados na própria cor. A força desta diferença se torna visível precisamente onde a superfície da pintura dividida em linhas e se encontra com a superfície de mesmo tamanho que dispensa as faixas, marcada apenas por resquícios da ação do tempo e leves modulações de cor. Ao empregar as reações químicas da oxidação, José Bechara nos traz em sua arte – somadas às referências da cor e o construtivismo – o tempo, elemento que manifesta de forma inevitável a submissão ao processo de mudança. Nada permanece o que é, e há um sentido do transitório e do que não permanecerá, que ocasionalmente leva à primazia do instável como conceito base em sua obra. Estes imponderáveis se referem repetidamente aos velhos mestres do construtivismo brasileiro, especialmente a já citada Geometria Sensível.

As propriedades materiais do aço, cujas partículas Bechara inclui em seus trabalhos, se associam de forma quase automática com a escultura. Nos anos 60 o aço foi adotado por artistas plásticos como substituto para o caro e dificultoso bronze. O aço permitia ainda ser empregado em escalas muito maiores que o bronze. O americano Richard Serra foi dos pioneiros a levar a escultura à escala monumental. Artistas como Eduardo Chilida, Tony Cragg, Werner Pokorny e outros recorreram repetidamente ao aço, à sua presença estática, às cores e texturas ferrosas que evocam a pintura.

Mas enquanto o aço é quase sinônimo com a escultura, é extremamente raro encontrá-lo na pintura. Durante o processo de inclusão de uma variedade de materiais e suas propriedades – como nas obras de Mario Merz, Jannis Kounellis, Günther Uecker, a Penone e Anselm Kiefer – a pátina ferrosa do aço também encontra novo significado na pintura. Ao unir o aço e a tela, pó metálico e tintas, José Bechara trabalha com as possibilidades de processo e pintura, ainda incluindo alguns materiais antigos. Unidos, estes elementos se convertem em uma pintura de identidade transformada que se desenvolve virtualmente e através da passagem do tempo. Bechara formula uma variabilidade quase subversiva que não depende da ação do espectador, mas é característica da própria obra. Esta ação parece estar imperceptivelmente assimilada ao espaço em que a obra foi criada (o Rio de Janeiro) e potencialmente também no local de sua exposição, onde o processo de mudança continua a acontecer. Mas além do conceito construtivista, Bechara se volta constantemente à exploração das possibilidades dos materiais adicionais. A partir de 2002 a preocupação com o espaço se tornou cada vez mais visível no horizonte de suas instalações, como nos trabalhos A Casa, e Ok, Ok, Let’s Talk (2006).

À diferença de esculturas mais clássicas (tais como Full de 2010) Bechara usa objetos e materiais que existem no mundo real, e que podem ser empregados de modo concreto. O quadrado e o cubo foram mantidos como os princípios fundamentais da forma, mas o artista os despoja de suas funções e os transforma, conferindo-lhes um estado de quase dolorosa instabilidade e inutilidade visível e física: uma casa que explode, um arranjo de mesa e cadeira impossíveis de serem usadas – por estarem completamente distorcidos. Ainda assim surge um poder visual carregado de energia dinâmica que expele vulcanicamente magma e fogo interno. Em todo o caso: nada acaba na desordem, nada degenera para o caos. Ao contrário, aqui temos mais provas do jogo cheio de matizes de Bechara, que brinca com as possibilidades da gravidade e de ruptura dos hábitos dos espectadores. É tentador ver nestes trabalhos uma proximidade conceitual com Erwin Wurm (The House), mas esta não se substancia inteiramente. De qualquer forma, pode-se certamente considerar um paralelo com o trabalho de François Morellet, o grande mestre da instabilidade geométrica, entre outros aspectos, por imbuírem suas obras com doses de senso de humor. Marilyn A. Zeitlin aborda o trabalho de Bechara de modo bastante certeiro ao apontar a “experiência escultórica” [iv]. Bechara tem levado adiante a dissolução da pintura colocada no início deste artigo nos seus trabalhos mais recentes, dentre os quais Gelosia de 2010 se tornou um marco. Ao adotar várias placas de vidro de grandes dimensões que apoia na parede, escalonadas uma sobre a outra ou lado a lado, Bechara cria interferências com faixas de emulsão ferrosa e tinta acrílica. Estas combinam a organização rigorosa geométrica das faixas com as suas alternâncias, as combinações difusas de cor que se expandem evocando a pintura, que se entrelaçam novamente de modo irritantemente sensual. Os reflexos nas superfícies das placas de vidro são outro fator. As placas refletem partes do espaço ao entorno, nos quais os espectadores experimentam a visão de seus reflexos e a transparência do vidro. Ainda assim sua permeabilidade é dotada de forte impacto estético. Este contexto remete ao trabalho de Gerhard Richter e seus trabalhos magníficos de vidro – especialmente Eight Grey de 2001. Em repetidas ocasiões, Richter explorou a força deste material tanto transparente quanto sólido em relação à sua pintura – inclusive na catedral de Colônia. No caso de Richter há um foco mais acentuado “em uma fascinação com a aparência ambivalente da cor como meio de representação e como material amorfo [v].” Há, porém, vários fatores presentes no trabalho de Bechara que o diferenciam claramente de Richter. Por um lado, seu firme interesse nas relações com o espaço: a interação entre o espaço definido concretamente e o espaço que se constitui na percepção visual. O objeto – a escultura ou a própria obra em vidro – se comprova de composição sólida, apenas para ser irritantemente evasivo.

Dentro deste processo, as novas obras em vidro envolvem não apenas a cor, mas cada vez mais a sua renúncia devido ao emprego da difusão do próprio material na superfície e no espaço. Esta virtualidade tátil escorrega para o não tátil, inclui o espaço atrás e em frente à obra sem determiná-la. Espaço latente se transforma em superfície, e vice-versa. As referências perdem sua clareza, e é precisamente esta a irritação que Bechara persegue. Seu questionamento do que possa ser verificado como percepção é fruto de sua reflexão sobre o tempo e o espaço – mas sem que objetos reais reflitam a realidade em sua total complexidade. Com esta abordagem, Bechara leva adiante o que inspirou artistas do Construtivismo e seu entusiasmo pela euforia e crença no progresso: o jogo lúdico com a forma racional e móvel. Forma que se coloca em movimento e é movida por terceiros na personificação virtuose da leveza e da flexibilidade, ainda presentes de forma latente na obra de Bechara.

Há por outro lado, também um acorde menor nas partituras de seus trabalhos, que se caracterizam por forças explosivas, sonhos de infinito, formas de possibilidades e uma latente dissolução e revogação das leis. Bechara o expressa em dois aspectos: na transformação via a emulsão material (a mutabilidade da superfície evocadora da pintura durante o processo da ação do tempo) e no distanciamento da pintura através do vidro que crescentemente acentua o espaço sem se constituir como pintura. Neste sentido, Bechara persegue a eliminação da pintura no sentido mais correto da palavra.
Bechara estabeleceu seu ateliê em um morro não muito distante do Corcovado que tem o Cristo Redentor no seu cume, a estátua monumental de Cristo que impera sobre a cidade do Rio com suas bênçãos, e sobre seu próprio bairro da moda. Aqui, em Santa Teresa, pequenas butiques se alternam com bons restaurantes entremeados de uma variedade de edifícios residenciais. Alguns foram reformados com estilo, outros estão relegados ao abandono. É um bairro de muito charme, mas a interação das diferenças sociais, o grande abismo entre ricos e pobres, os traços brutais do tempo que mostram os altos e baixos da cidade parecem muito mais importantes aqui. E como é tão freqüentemente nesta cidade, o resultado são vistas inimagináveis criadas na frente tectônica de morros que se deparam com o oceano Atlântico, a interação entre os largos horizontes e a densidade da povoação. A alternância entre o cinza da cidade – de quando em quando embelezada com recentes camadas de tinta nas fachadas reformadas das casas – e o azul tranqüilizador do céu e do mar. Há reflexos das diferenças nas estruturas sociais, entre a beleza e o declínio, entre esperança e o fim. Os trabalhos de Bechara testemunham a constante transformação ao mesmo tempo em que tem raízes no clima intelectual da nação. Entretanto, Bechara se opõe a este aprisionamento perturbador em estruturas que não parecem nada mutáveis com o caráter transitório e lúcido de sua arte, através de um novo horizonte de experiências que promete abertura e expansão.

 

[i] Annalice Del Vecchio, Kinetische Kunst: ohne zeitliche oder räumliche Grenzen (Kinetic Art: Without Temporal or Spatial Boundaries), vejam: http://www.goethe.de/ins/br/lp/kul/dub/bku/de11788964.htm.
[ii] https://de.wikipedia.org/wiki/Lygia_Clark , ítem 8
[iii] ibidem
[iv] Marilyn A. Zeitlin, José Bechara. “Breaking but not entering” in: José Bechara, Belfuscu, Santiago de Compostella, Arte Dardo, 2008, p. 197. 5
[v] http://www.cosmopolis.ch/kunst/d0177/gerhard_richter_streifen_und_glas_d000177.htm