O Olhar Tenso de José Bechara

David Barro

Santiago de Compostela, Galícia, Espanha
José Bechara, publicado por editora Dardo – DS, Espanha e Galeria Carlos CarvalhoArte Contemporânea, Portugal, 2005

 
 

Gostaria de começar esta breve análise da obra de José Bechara enunciando a minha convicção de que o seu olhar é, acima de tudo, um olhar pictórico. É também um olhar humanizado, poético, tenso, mas, sobretudo, insisto, nascido na pintura como experiência vital. Aliás, neste olhar habita uma aura de mistério, possivelmente porque, à maneira de artistas como Giacometti, Bechara trata de “construir eliminando”, ensaiando imagens mentais quase perdidas.

Nessa “soma que permanece”, nessa limpeza de traços, nessa tensão nua, José Bechara encaixará um desenho – em suporte de papel de arroz – no qual aparece a arquitetura de uma casa tingida de vermelho, de ensangüentada seiva, onde simplesmente se revela o esqueleto da sua estrutura. O seu caráter sintético lembrou-me imediatamente a única imagem que ilustrou o tratado que Laugier escreveu no século 18, “Essai sur l´architecture”, no qual entendia que as ordens da arquitetura clássica derivavam das primeiras construções em madeira. Laugier deduziu assim os princípios essenciais da arquitetura e rompeu com a ditadura da tradição para dar início ao pensamento racionalista da arquitetura moderna. Depois procurou as origens da cabana primitiva, uma arquitetura estruturada apenas com vigas, pés e tetos, sem paredes; ou seja, uma arquitetura sincera, capaz de valorizar o espaço.

É mais uma questão de arquitetura de estruturas, e este assunto podia ter sido esquecido. Tudo isso serve para introduzir um trabalho no qual desenvolveu temas como a morte, o tempo, o abandono, a memória… mas, sobretudo, uma espécie de silêncio e, como dizia, de apagamento. Daí que, para entender as suas experiências mais apagadas, e depois deste breve início a prestar homenagem ao argumento mais mínimo, seria bom começar com a sua experiência mais colorida, no Paraná, da qual passará a uma forma mais austera, a uma realidade mais escura, com mais sabor à pele. Aliás, esta obra significa um importante salto na sua trajetória para o tridimensional, para a fase que é ao mesmo tempo escultura, desenho, pintura… mas, sobretudo, experiência estética.

A casa do Paraná é uma experiência real. Uma casa que parece um bangalô temporário, que expulsa objetos pelas janelas afora, que acabam por esvaziá-la de ar. É como se abríssemos a janela de um avião e fôssemos sugados para o exterior, significando o nosso fim. Talvez Bechara assumisse o provérbio árabe, segundo o qual “quando uma casa está terminada a morte entra nela”, e por isso quisesse voltar a começar tudo, fiel a um espírito inconformista de saltos contínuos que, por outro lado, caracteriza a sua trajetória. Com jeito de anedota poderíamos lembrar as palavras que Adolf Loss põe na boca de um arquiteto em História de um pobre rico: “Como é que você deixa que lhe dêem coisas? Não projetei tudo que é necessário? Não precisa de mais nada! Você está completo! […]” Para o proprietário já não existiriam pintores, nem artistas, nem artesãos. Ele estava privado da vida futura e de aspirar a algo, do ser e do desejar. Pensava: “agora é preciso aprender a andar com o seu próprio cadáver”.

Paulo Sérgio Duarte falava mais seriamente ao descrever como José Bechara decidiu posteriormente traduzir esta colorida experiência do Paraná numa caleidoscópica escultura de madeira. Assim Duarte nos fala de como Bechara assume a sua experiência pictórica para transportá-la à escultura: “é uma espécie de monocromático praticado no espaço”. Deve-se supor que Paulo Sérgio Duarte, seguidor da obra de Hélio Oiticica, esteja a jogar com o sentido dos seus relevos espaciais, de seus “monocromáticos no espaço”. (1) Embora, o interior da peça de Bechara seja meramente intelectual e não participativo. Daí que Bechara se atreva a definir o seu trabalho como um objeto monocromático, que se projeta e se expande no espaço; sem renunciar a qualquer interpretação que o possa ligar à sua própria história recente.

Apesar de tudo, a razão está do lado de ambos porque monocromo não é necessariamente aquilo que é constituído de uma única cor, mas também aquilo que é cromaticamente uniforme, como A casa de Bechara. Proponho que, por um momento, imaginemos esta casa como uma pintura dobrada pelo calor, que ganha uma forma abstrata tridimensional. Se a abrirmos outra vez no plano não distinguimos mais do que as suas diferenças de brilho e, talvez, como Mark Tansey, Bechara dissesse aos jornalistas que estava poupando a cor para a sua velhice. Muitas pessoas pensarão que estou brincando, mas, com efeito, esta é uma brincadeira tão séria como a descrição que Kierkegaard faz de uma pintura totalmente vermelha, a qual interpretou como sendo a superfície do Mar Vermelho depois de ser atravessada pelos israelitas e serem afogadas as tropas egípcias. (2) Já Danto afirma que “com o suprematismo torna-se difícil pensar em pinturas que não impliquem imagens, mas uma realidade objetiva monocromática, uma realidade, portanto, não objetiva, como ele gostava de dizer sobre Malevich. E, na verdade, penso que o termo ‘não objetivo’ tem como significado último uma certa realidade espiritual ou matemática”. (3)

Yves Klein também se perguntava se o artista do futuro não seria aquele que através do silêncio, mas para toda a eternidade, expressaria uma imensa pintura carente de qualquer noção de dimensão. Esvaziou, assim, uma galeria para a apresentar vazia, virgem, sem nenhum elemento de contemplação e experimentação e que essa ausência, esse niilismo, se traduzisse como espaço de sensibilidade. Yves Klein procurava esse “espaço” como matéria-prima numa mostra de 1958, na galeria Iris Clert, ao pretender enfatizar a força energética que os espaços possam ter a partir da energia neles acumulada, da experiência. (4)

Tal como Klein, nesta procura – ou como veremos posteriormente ao falar de Medardo Rosso –, José Bechara sugere por defeito, dissimulando as matizes, revelando o que está presente desde a omissão, a ausência ou, inclusive, o vazio – embora as suas obras pareçam estar cheias. As suas obras sussurram realidades esquivando a imagem sem a negar, sem a desenhar, mas deixando campos abertos para a sua possível conclusão, sempre imaginada, intuitiva. As suas obras acariciam a realidade, descobrem sons apenas possíveis a partir do silêncio, numa espécie de libertação subjetiva próxima das partituras de John Cage. Nestas obras o som não existe, interpreta-se; nas pinturas de Bechara muitas vezes também não há pintura, pensa-se.

Há alguns anos referi-me à forma como nas obras de Ignasi Aballí o simples ato de soprar o pó acumulado que cobre uma folha de papel resulta num ato artístico; os seus Sopros são desenhos que limpam o papel e falam de uma pintura que se manifesta para além dos limites do visível. A sensação perceptiva ou visual se esgota para explorar o lado mais emotivo, o que não vemos, nem imaginamos, seja a presença evocada do corpo ou o próprio jogo luminoso que se estabelece com a arquitetura do lugar a determinadas horas ou, mais concretamente, com a luz que penetra através de uma série de janelas projetadas sobre o chão e sobre a própria obra. (5) Esta cumplicidade se torna mais extrema nas suas fotografias intituladas Reflexão, construídas a partir de reflexos no chão, que recriam atraentes composições abstratas; diferentes sensações que fundem o visto e o pensado, o pretendido e o sentido. Ignasi Aballí conclui: “o fato de não representar nenhuma imagem concreta torna todas as imagens possíveis”. Artistas como Bechara sabem que por detrás de cada aparência vive uma imagem. E sabem que devemos construí-las, dar-lhes forma na nossa imaginação. As suas obras convidam à especulação, mas esta se torna sempre contida, econômica. Assim, precisam de um olhar lento, atento, ou melhor, esvaziado. Parecem seguir a máxima Zen que assinala que devemos nos desprender do desejo para alcançar o pretendido.
Eis por que julgo oportuno recuperar umas palavras de Tanizaki que fecham o seu Elogio da sombra: “Para dizer a verdade, escrevi isto porque queria indagar se existia alguma via, por exemplo, na literatura ou nas artes, com a qual se pudesse compensar os imperfeitos. No que me diz respeito, gostaria de ressuscitar, pelo menos no âmbito da literatura, esse universo de sombras que estamos a dissipar… Gostaria de ampliar as goteiras deste edifício chamado literatura, escurecer as suas paredes, fundir na sombra aquilo que é demasiado visível e esvaziar o seu interior de qualquer adorno supérfluo. Não pretendo que seja necessário fazer a mesma coisa em todas as casas. Mas acho que não faria mal se houvesse apenas uma casa deste tipo. E para ver o resultado, vou apagar a minha luminária”. (6)

No fundo, não estamos falando mais do que de uma luz que avança para a economia de formas, embora tal economia se ofereça a partir de uma concentração de objetos como ocorre em A casa de Bechara. Essa energia plástica não é mais do que uma condensação do vivido, a extrema tensão da experiência plástica. A ação do vento, do sol ou da água, ou seja, a ação dos elementos sobre as coisas tem muito a ver com essa acumulação de elementos construtivos em obras como Aranha, que, como aponta Agnaldo Farias, “equivale a uma espécie de explosão, um alerta acerca do perigo que ronda o desejo de estabilidade e conforto, que pretendemos conseguir quando organizamos as nossas salas de jantar e salas de estar, com a suas mesas e cadeiras, com as suas poltronas e o sofá em volta da mesa de centro e na frente do televisor, como se tudo isto fosse algo precário, na iminência de ser atacado por uma força violenta e súbita”. (7) Porque, como dizia, José Bechara trabalha a experiência e não a imitação. O seu desenho é mais escritura, exercício. Por isso as suas casas acabam por ser tão dramáticas e pesadas como a Roma de Piranesi e, por isso, valoriza e resolve a partir de contrastes, para potenciar o maciço. Assim entendemos que essas maravilhas, que são as carceri de Piranesi, nos sejam apresentadas sem espaço para o olhar, infestadas de perspectivas que conformam uma espécie de homenagem ao escuro. Aí, entre tanta minuciosidade de seus traços, onde a confusão se converte em massa; o espaço, em cenografia; e o desenho, em virtuosismo decorativo.

Meses antes de morrer, Giovanni Battista Piranesi escreve à sua irmã uma carta, em que faz um resumo da sua vida. Nela, além de enumerar as suas obras, desvela a sua, de certa forma evidente, inclinação para a cidade de Roma, onde encontrará a sua verdadeira inspiração. E isso ele faz de uma forma particularmente emotiva, declarando-se romanista de convicção. Mas a sua Roma é uma Roma um tanto fundida, escura, que contrasta com a visão que lhe precedia de clara filiação vitruviana. A de Piranesi é uma Roma pitoresca, fragmentada e incomensurável. É uma exaltação da ruína, dessa que perde a batalha para a natureza, dessa que ameaça a memória histórica. E as obras de Bechara aparentam ter perdido as suas respectivas batalhas, desde a pintura de intervenção até a essa espécie de vômito de objetos que cortam a respiração das suas casas.

Tudo o que foi dito é uma resposta ao sentido de tomar como ponto de partida a pintura que, sem dúvida, atua como gérmen e princípio gerador do seu olhar, como folha em branco da sua poesia visual. Em todo o caso, é necessário matizar que, como aponta Luiz Camillo Osório, “embora tendo a sua formação e o seu olhar vinculados à tradição pictórica, não é o ofício da pintura que o motiva no dia-a-dia do ateliê. A pintura é o horizonte da sua poética; é o lugar a partir do qual ele pensa a arte, mas não condiciona a necessidade de expressão da sua obra, não lhe basta como operação criativa”. (8) Osório insiste no fato de que as suas operações não partem de uma sensibilidade escultórica e é por este motivo que Bechara certamente se entusiasma ao falar de um escultor tão pictórico como Medardo Rosso.

O seu contato com a obra ao vivo de Rosso acontece de uma maneira fortuita e casual em Santiago de Compostela, por volta de 1996. Vale a pena determo-nos aqui porque, na verdade, estando muito distante na aparência formal em relação à sua obra, podemos advertir e apontar certas atitudes que ganham significado em ambos e que são vitais para entender o universo expandido, a precisão perceptiva e a intensidade luminosa de alguns dos projetos de José Bechara. Para este trajeto, gostaria de partir de uma fotografia realizada pelo próprio Rosso em 1895, intitulada Impresión de boulevard. Paris la Nuit. Nela vemos como Rosso dá cor a diferentes vazios que se produzem na sua obra, e não o faz para acentuar o bloco esculpido, mas para desvelar o inacabado, o voluntariamente desmaterializado.

Poderíamos, de certa forma, conjeturar que, nesse caso, Rosso trata de potencializar o virtual, porque “virtual”, do latim virtualis, não é mais que um derivado de virtus, força, ou aquilo que é a mesma coisa, potência. Sem medo da evidente redundância, apontarei que o que foi então pretendido não foi mais do que potencializar a potência, em outras palavras, aquilo que tem virtude para produzir um efeito embora não o produza, o que tem existência aparente e não real. Falamos, por isso, de algo que apenas existe em potencial e não em ato, e que, no entanto, equiparamos com errados sinônimos como eventual, que não deixa de significar algo casual ou sujeito a uma contingência ou possível, algo que pode ser ou suceder. Essa tensão, esse equilíbrio, se dá nos exercícios estéticos de José Bechara, que sabe que o possível equivale ao estático, ao já constituído, a uma espécie de realidade dissimulada, uma vez que, como o virtual – feliz reciclagem de possíveis – não acaba de existir longe da sua condição de resposta ou soma de conhecimentos do real. (9) Rosso recupera essa possibilidade de imaginar do virtual para operar a partir da menor fissura, a partir das zonas de conflito; exatamente igual ao que é pretendido por um Bechara obcecado por configurar distintos equilíbrios entre opostos, por atuar em todo o espaço intersticial que medeie entre contrários.

Medardo Rosso, entusiasta avaliador da estatuária grega antiga e da figuração egípcia, “procurava as tonalidades múltiplas e a feitura fugaz de gestos, expressões e movimentos, apenas marcados como signos incipientes da forma”. (10) E também, como dizíamos, a qualidade luminosa da percepção. Esse olhar tenso, essa contenção, está presente cada vez mais no universo de um Bechara capaz de digerir e oxidar a sua vitalidade numa experiência estética. Manchas, impressões, leves escavações, oxidações e incisões são o produto do processo de trabalho ou, o que é a mesma coisa, fruto ou questão de tempo encerrado dentro da obra. A sua pintura está então duplamente ligada ao tempo. Estamos falando de processos temporais, de um tempo capaz de deteriorar esteticamente a obra para torná-la uma nova obra, tatuada por essa experiência. Poderíamos, até certo ponto, comparar essa sensação à sensação sentida diante dos restos de pinturas de frescos do Renascimento, dessa pintura capaz de guardar a sua própria história, marcada e violada pela passagem do tempo, que se torna um involuntário co-autor.

A casa de Bechara é como uma grande pintura de história despregada no tempo e no espaço. Algo como o quarto destruído (The destroyed room), que Jeff Wall cuidadosamente construiu numa clara alusão à pintura A morte de Sardanápalo, de Delacroix. É uma obra mais marcada pela violência do que pela desordem. Como nas acumulações de móveis e objetos de Bechara, tudo está cuidadosamente desordenado, agredido e violentado, nada é produto do azar, apenas do tempo. Também não apontamos quem é o responsável por essa aparente desordem que não é mais do que uma ordem crônica. “Um bom artista representa o criminoso com a mesma empatia que a vítima”, Jeff Wall refere numa entrevista com Jean-François Chevrier “Não é assim a pintura de Goya?” Bechara não acusa, mas é possível intuir na sua virtuosidade de formar uma arte crítica perante uma certa instabilidade do mundo.

No trabalho de Bechara existe, formalmente, uma necessidade de adotar um contato com o mundo real, de ter uma relação com a fisicalidade do espaço, ao ponto de necessitar sair dos limites do quadro, dos limites da representação, e ocupar fisicamente um espaço real para imprimir-lhe uma ordem formal, uma medida humana. Bechara planeja uma batalha entre sensibilidade e estrutura para, como em certa altura afirmou Kounellis, passar a não representar para simplesmente apresentar. Esta relação com Kounellis poderia estender-se igualmente ao trabalho que Bechara realizou com óxidos e outros exercícios estruturais com metais que também nos aproximariam a obras tão estavelmente instáveis como as de Richard Serra. Também teria de aludir à orientação do olhar, que inevitavelmente fica limitada ao momento de tentar uma percepção global do espaço. Este pós-minimalismo capaz de reforçar as propriedades físicas da obra, sobretudo em Bechara, chega a confundir, a perverter a nossa visão, a desorientar-nos ao ponto de provocar uma perda do sentido do real. Sem chegar a extremos como os tocados pelas últimas peças, como a base de estruturas de ferro que suportam vidros e espelhos de José Pedro Croft, o trabalho de Bechara em A casa trata de abrir caminhos, muitas vezes entrecortados e labirínticos, mas também quase como próteses, capazes de reorganizar, ativar e dar novos sentidos a espaços já constituídos.

Mas se Bechara tira alguma coisa do legado de Serra é precisamente essa sensação do peso. À semelhança de Serra, talvez Bechara julgue que todos estamos condenados e condicionados pelo peso da gravidade – seja este maior ou menor. Assim, Serra explica que “o processo construtivo, a concentração e o esforço diário fascinam-me mais do que qualquer revelação, mais do que qualquer procura do etéreo. Tudo que escolhemos na vida devido à sua ligeireza revela-se em pouco tempo como um peso insuportável”. Talvez seja verdade que estejamos confrontados com o medo deste peso, embora este não seja mais do que uma forma de memória, uma marca indizível.

Por outro lado, não me é difícil abstrair-me das formas reais de A casa de Bechara para derivar essas formas e encontrar o suprematismo dinâmico de Malevich, essa multiplicação de formas, essa espécie de orgia dos modos, de possibilidades e disposição de elementos aparentemente instável que caracterizam peças como Suprematismo nº 56, de 1916. Nesta peça, uma grande linha diagonal desempenha o papel de eixo capaz de albergar linhas, retângulos, triângulos, quadrados e menos círculos e semicírculos até produzir uma misteriosa mobilidade. Pergunto-me o que existe por trás dessas figurações mascaradas de Malevich, mas também que mistério guarda essa pele de madeira exteriorizada na casa de Bechara. Talvez esse espaço escuro esconda outro quadro negro ou seja simplesmente um espaço cego, inabitável e daí essa projeção para fora, esse vômito exterior. Malevich quebrou as fronteiras entre a escultura abstrata e a arquitetura; sente-se essa herança no exercício de neutralização do objeto que José Bechara ensaia.

Esse repouso aparentemente dinâmico multiplica as possibilidades e parece querer nos dizer que não existe nenhum centro, que tudo flui e se expande no infinito. No fundo, estamos falando da pura experiência estética, de uma violação do funcional para silenciar o caráter do objeto, para neutralizar a sua memória. Em todo o caso, não podemos ver este desvirtuar do uso corrente de um objeto como destruição, mas como um ready-made capaz de ser lido como um passo a mais numa seqüência de acontecimentos que, como na sua pintura, são produzidos para preparar a nossa experiência estética.
Mas falávamos de um Malevich que num determinado momento se perguntou o que se passava quando essa geometria plana era transportada para o plano tridimensional. A resposta encontrava-se talvez na arquitetura dos espaços Proun de El Lissitzky, nessas combinações dinâmicas que parecem obedecer a uma disposição caprichosa. El Lissitzky viu o assunto nestes termos: “Proun começa na superfície, avança até a maquete espacial e, daí, à construção de todos os objetos da vida cotidiana. A este respeito, Proun vai para além da pintura e seus artistas e para além da máquina e seu engenheiro, e passa a estruturar o espaço e a fragmentá-lo, servindo-se de elementos de todas as dimensões, e constrói uma nova figura da natureza, versátil embora uniforme”. (11) (Embora o mesmo Malevich tenha experimentado com volumes reais a partir de maquetes de escala que tratam de quebrar as barreiras ou fronteiras entre escultura abstrata e arquitetura).
Destes exercícios de justaposições e agregações de volumes nascerá o construtivismo e grande parte da linguagem formal do movimento moderno. Tudo isto faz sentido quando Bechara fala da Casa como “uma experiência muito dependente dos aspectos formais, mas também igualmente dependente das conexões simbólicas que ela possa produzir”. (12) Talvez tudo isto seja mais efetivo se pensarmos na sua condição familiar ou, mais concretamente, estranhamente familiar. E com o nome de “Estranhamente familiares” pôde-se ver uma mostra produzida pelo Walker Art Centre de Minneapolis articulada em volta de quatro eixos temáticos (estruturas portáteis; rituais de uso; objetos multifuncionais; objetos polêmicos), que nos falava da importância do design nas nossas vidas, mas sobretudo do questionar, de uma espécie de inconformismo diante da preguiça visual do cotidiano. Seguindo máximas de Berger ou de Perec para (re)-conduzi-las ao absurdo – numa afuncionalidade crítica que bem poderíamos aplicar ao que darei o nome de mal de Ikea – a mostra convidava, sobretudo, a tornar o assumido como estranho na medida que é muito escasso. Assim, o rotundo manifesto das “formas perdidas” de Rachel Whiteread atuava como maravilhoso paradigma. Outros exemplos na exposição eram: aRugelan chair, de Julian Lion Bosenbaum, que tem uma dupla função de almofada e cadeira; aCabriolet/ Ocasuibak table, de Paolo Ulian, que integra no mesmo design de funcionalidade um banco, uma mesa e um espaço de armazenamento; ou a Kesä-Kontti, uma magnífica metamorfose da tradicional barraca de férias finlandesa em casa transportável. Mas essa estranheza é ainda maior se pensarmos nesse congelamento da experiência explosiva que Bechara instala. Aqui tudo é selado e não há saída; mesas, colchões, armários e outros objetos quebram a sua função para atuar como parasitas apenas legíveis de acordo com a sua experiência estética. A casa como refúgio fica pervertida e resta-nos apenas o eco dos objetos, a carga emocional e suas gravitações. Suponho que poderia trazer-nos à lembrança O último tango em Paris, de Bertolucci, no qual três vidas arruinadas – uma, a do edifício de Henri Sauvage na rua Vavin, em Paris – entrelaçam em silêncio uma história configurada a partir de fantasmas pessoais da qual sairá vencedor o destino implacável da ruína.

Com esta sintaxe, compreende-se que tudo permaneça em aberto, embora esteja completamente fechado. Penso nas suas virtuais interpretações e neste tipo de engano e distorção bem poderíamos recorrer a um fragmento de um texto de Sigfried Giedion emEspaço, tempo e arquitetura, a propósito do Palácio de Cristal de Joseph Paxton para a Primeira Exposição Universal (1851): “Podemos entrever uma delicada rede de linhas, sem possuir nenhuma chave para julgar a sua distância a olho ou as suas várias dimensões. As paredes laterais estão demasiado longe para se poderem encarar num olhar único. Em vez de correr de uma parede final à outra, o olhar perde-se numa perspectiva sem fim que desaparece no horizonte. Não podemos afirmar se este edifício se levanta cem ou mil pés acima de nós, ou se o telhado é liso ou é composto de uma sucessão de nervos, uma vez que não existe um jogo de sombras para pôr os nossos meios ópticos em posição de apreciar as medidas […] todos os elementos naturais difundem-se na atmosfera”. O que precisamos certamente é de tempo para nos orientar. Tempo para, como Rosso ou Whiteread, procurar o espaço “entre” as coisas. Ou, simplesmente, tempo para encontrar relações involuntárias com as tensões e equilíbrios de artistas como Mark di Suvero, com as agressivas intervenções na esfera pública de artistas como Olaf Metzel, com as críticas de madeira de Tadashi Kawamata, ou com as relações planas, correspondências e intervalos de Anthony Caro… Sem dúvida que o nosso olhar atento reparava na musicalidade das peças destes artistas para se lembrar de alguma pintura abstrata de Kandinsky ou o já citado Malevich; e é certo que José Bechara gozaria de cada gesto, independentemente de tudo isto ter sido construído – ou não – com merda de elefante. Mas também da arquitetura neoplástica de Theo van Doesburg e as suas conhecidas contra-composições (depois da morte deste arquiteto em 1931 o grupo de artistas De Stijl perdeu grande parte do seu interesse para se ligar à “nova objetividade”).

Magdalena Jetelová diz que “a madeira contém todos os elementos de origem, crescimento e tempo”. (13) Outros, como Marguerite Yourcenar, assinalam o tempo como grande escultor: “No dia em que se termina uma estátua, a sua vida, em certo sentido, começa”. (14) É assim a pintura in progress de Bechara, uma pintura que encontra as suas raízes em atitudes como as de Yves Klein. Em Bechara não há orquestras, nem mulheres-pincel, nem armas de fogo que entronem o espetáculo de determinados “saltos para o vazio” do pintado. Mas, sim, um jogo natural de ações que permitem o fortuito, gestos como aquele de deixar a tela ao ar sobre a mala do carro para que a chuva a pintasse. José Bechara compra as telas gastas dos caminhoneiros; ou seja, quando chegam a suas mãos já são pintura, tendo vivido tanto. Bechara compra segundo as marcas e cicatrizes que o tempo imprimiu nelas, como descreve Agnaldo Farias: “O artista analisa as perfurações, arranhões, escoriações, enfim, o desgaste de um material exposto ao sol, vento e chuva com impiedade, contraindo-se no frio, dilatando-se no calor, capaz de trabalhar atravessado por cortes que o comprime de fora para dentro, lacerando-o ao ponto de o rasgar, com eixos de força a obrigá-lo a moldar-se ao corpo de volumes compactos e regulares que embalam mercadorias transportadas. Volumes que esticam a lona de todos os lados, quando as travagens, acelerações, subidas, descidas e curvas, oscilando para cá e para lá, tornando-a elástica e resistente, como uma placenta que, ao fim de cada viagem, será esvaziada e enchida uma vez mais”. (15)

Mais tarde, no ateliê, Bechara inicia o processo de oxidação que caracteriza as suas pinturas recentes ou, mais concretamente, essa maneira de ferir e crucificar a tela a partir de uma série de capas de aço de diferentes espessuras que sela sem pincel para depois molhar e deixar que o tempo (o calor e a umidade) atue e deixe as suas marcas. Mais tempo, mais cicatrizes e mais memória que tingem, casualmente, a tela, que se combina com o traço composicional controlado, que o artista imprime a partir de uma série de largas tiras de fita adesiva que estruturam a tela já antes de proceder à sua oxidação. Assim se constituem as matizes, os gestos que tornam artístico o processo que confere a forma final a partir da combinação de telas que acabarão por definir o universo de rigorosas tensões que são as suas pinturas. Daí os seus dípticos, trípticos ou polípticos e as suas diferentes intensidades; também o seu jogo de contrários, as zonas de conflitos e tensões que denotam um olhar cúmplice da vida como valor estético.

Por isso a pintura de José Bechara é um gesto de agressão, mas também de proteção – fitas – que é, afinal, um gesto de tempo. Porque a vida, como o tempo, é pintura para um Bechara que poderia subscrever os pensamentos de Berger, quando este afirma que toda a arte baseada numa observação profunda da natureza acaba por modificar o seu modo de a ver. E é assim que Bechara se apropria de diferentes “marcas” do tempo, para lhes dar uma nova vida, para as fazer reviver. Tudo isto se mantém em séries como Pelada, que revela uma superfície de couro branco de vacas, bois e até fetos, que revelam uma textura capaz de registrar essa vida cheia de marcas que anteriormente açoitaram o animal. Novamente a vida e os seus desenhos aleatórios, novamente as marcas de uma violência presente na obra de Bechara, embora nunca se torna completamente determinante na sua poética. Formalmente, notamos essa extrapolação de materiais à pintura, alienados das suas funções originais. Nessa ocasião, esse ready-mademostra peles e tetas de vacas numa rica apropriação que volta a revelar uma situação de indiferença que se repete na obra de Bechara (a dos profissionais do matadouro, a da passividade bucólica dos chalets do Paraná, a da inevitável erosão das coisas…).

Assim, José Bechara apenas poetiza com a ajuda do tempo. “Os grandes aficionados das antiguidades restauravam por piedade. Por piedade nós desfazemos a sua obra. Pode ser que também nos tenhamos habituado mais às ruínas e às feridas”. (16) As pinturas de Bechara não resultam em mutilações estéticas? Não é o tempo o verdadeiro agente capaz de fraturar o sentido de cada peça? A necessidade de restaurar, ou melhor re-fabricar, uma estátua completa a partir de membros que não lhe pertencem originariamente já não faz parte do nosso tempo; talvez não habitemos uma época tão vaidosa, ou simplesmente estejamos diante de uma simples mudança de gosto. Mas o certo é que, hoje, esse tempo como fissura faz-nos amar esses cortes, essas quebras, essas experiências, em princípio, externas. Assim temos o curioso relato de Yourcenar que tão bem coincide com essa primeira visão de Bechara: “Uma forma de transformação ainda mais pasmosa que as outras é aquela sofrida pelas estátuas de bronze fundido. Os barcos que transportavam o pedido executado por um escultor de um porto para o outro, as galés nas quais os conquistadores romanos tinham amontoado o seu saque grego para o levar a Roma ou ao contrário – quando Roma se tornou pouco segura –, para o transportar a Constantinopla, por vezes naufragando, atirando ao mar corpos e bens; alguns desses bronzes naufragados, repescados em boas condições, como vítimas de afogamento reanimadas a tempo, não conservaram da sua estadia submarina mais de que uma pátina verde, como o Efebo deMaratona ou os dois poderosos atletas de Erice encontrados mais recentemente. Houve frágeis mármores, por outro lado, que saíram do mar corroídos, comidos, ornados de formas barrocas esculpidas pelo capricho das ondas, cheios de conchas incrustadas como essas caixas que comprávamos nas praias quando éramos crianças. Para essas estátuas, a forma e o gesto que lhes tinha sido imposto pelo escultor não foram mais do que um breve episódio entre a sua incalculável duração de pedra no seio da montanha e depois a sua longa existência de pedra a jazer no fundo das águas. Passaram por essa decomposição sem agonia, por essa perda sem morte, por essa sobrevivência sem ressurreição que é da matéria entregue às suas próprias leis; já não nos pertencem”.

Deste modo, esculpir e pintar não é mais – nem menos – do que um acúmulo de acontecimentos, um agrupamento de erros disfarçados de acertos ou vice-versa, um universo de incidências, produto de uma tentativa de dar ordem ao caos, uma purificação da experiência que não revela mais que a consciência tão manchada da arte como vida, mas, sobretudo, revela que em José Bechara tudo deriva de um feliz olhar tenso.

 

 

(1) COMPLETAR NOTA
(2) S. Kierkegaard. Either/Or. Princeton: Princeton University Press, 1994.
(3) A. Danto. [falta o título da obra]
(4) D. Barro. “Un paseo por las nubes”. On White Air. Maria Pia Oliveira, Museo da Cidade (Pavilhão branco), Lisboa, 2003.
(5) D. Barro. Op. cit.
(6) Tanizaki.
(7) A. Farias. “José Bechara. Duas margaridas e uma aranha”.São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2004.
(8) Luiz Camillo Osório. “José Bechara: Processo e Desvios” (Texto inédito)
(9) D. Barro. “Croft ver Lápiz) Lo virtual contra lo posible.
(10) G. Moure. “Medardo Rosso: la inflexión contemporánea de la escultura”. Medardo Rosso. Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte Contemporánea, 1996.
(11) M. Schneckenburger. “La construcción del mundo”. Arte del século XX (vol.II). Colônia: Taschen, 1999.
(12) Entrevista para TV Cultura, Rio de Janeiro, 2004.
(13) Taschen.
(14) Ver o Arte y parte nº 4
(15) A. Farias. “O suma da violência”, …. [as 3 notas estão incompletas]
(16) Idem.

 

 

David Barro, editor e co-diretor da revista Dardo. Professor de arte contemporânea na Escola das Artes da Universidade de Porto (Portugal). Crítico de arte de El Cultural (El Mundo) e membro do conselho editorial da revista Galega de cultura Grial (Editorial Galaxia). Curador de inúmeras mostras individuais e coletivas. Colaborador da revista Lápiz desde 2000; fundou e dirigiu a revista [W]art (anos 2003, 2004, 2005); dirigiu a revista Arte y parte (anos 1998 e 1999) e foi diretor e fundador da revista cultural InteresArte (Editorial Galaxia). Foi fundador e diretor artístico de A Chocolataría no ano 2005.