Sobre os vidros

Luiz Camillo Osorio
Rio de Janeiro, Brasil, 2015.
Texto sobre a exposição “Jaguares”, no Paço Imperial – RJ, 2015-2016.

 
 

A poética de José Bechara, desde o começo de sua trajetória, é marcada por incorporações de materiais cotidianos transformados por uma intervenção plástica marcadamente construtiva. A utilização recente dos vidros parece trazer algumas novidades. É sobre elas que quero falar. Importante frisar que não há rupturas, mas uma sobreposição constante de processos, procedimentos e materiais. Os vidros mudam o modo como suas instalações atuam no espaço e produzem uma experiência estética. Sim, falo aqui em experiência na medida em que estes trabalhos apostam na presença singular do acontecimento plástico e no quanto ele se desdobra no jogo de sensações e sugestões. Falar em experiência é falar em processo de formalização – algo que se produz no intervalo entre o que se vê e o que é visto.

Diferentemente das lonas de caminhão, o vidro não tem tempo, sua superfície não deixa grudar densidade histórica, não insinua profundidade. Ao contrário, o olho perpassa, atravessa o plano e se põe em contato com o que está fora. Se a lona era uma opção pela “interioridade” do material, o vidro é todo transparência e exterioridade. Além disso, se a lona acumula e resiste ao tempo, o vidro está na iminência da fratura, da quebra, de deixar de ser. Na lona interessava o que vinha do uso anterior – as manchas, os rasgos, as emendas, o descoloramento, as falhas – já no vidro interessa o que ele mostra fora dele, o que é pura articulação com o espaço e os outros elementos incorporados.

A saída para as instalações, realizada em momento anterior de sua obra, no começo dos anos 2000, vinha dos volumes agregados pela oxidação da lona, que aos poucos foi produzindo um gesto composicional que se projetava no espaço e incorporava a arquitetura. Não por acaso ele vai trabalhar com casas, móveis, mesas, elementos de uma arquitetura reduzida à geometria que se articulam na tensão entre brutalidade e delírio. A referência específica a coisas no mundo, objetos reconhecíveis do nosso cotidiano, foi se transformando em um jogo entre formas cheias e vazias que desenhavam no próprio espaço.

É deste gesto gráfico agregativo que surgem os vidros e as instalações recentes. Vários elementos anteriores são reapropriados e deslocados. Como nas suas pinturas e instalações, há uma ação que geometriza e outra que transtorna a forma, um jogo entre equilíbrio e instabilidade. Entretanto, aqui entra também uma certa fragmentação corporal, como se a frieza do vidro e das interferências geométricas no espaço o obrigassem a inserir uma energia expressiva através desses fragmentos pendurados. O ruído contido, que nas lonas vinha da densidade acumulada do material, aqui é introduzido com a soma de fragmentos heterogêneos que se combinam pelo conflito e não pela fusão harmoniosa – uma cabeça pendurada, um volume de papel, um tubo de luz, uma inserção pictórica ou cromática na parede. Tudo se agrega em torno do vidro que é o catalisador plástico da instalação.

De certa maneira, podemos dizer que estas instalações com os vidros sintetizam muito da trajetória poética de José Bechara. Há neles uma compressão expressiva que articula o frágil e o bruto, a impessoalidade e o drama. Coisa que já aparecia nas lonas com a geometria introduzida pela oxidação, mas que aqui se explicita sem cerimônia. A dimensão dramática adquirida pela obra parece-me produzida pela inserção da luz, que assume um papel decisivo: não só pela temperatura que ela dá à instalação, aquecendo o vidro, como pelo jogo de sombras e reflexos que é introduzido. É também aí que a experiência estética, mencionada de início, ganha tonalidades afetivas desconhecidas em sua obra anterior – mais especulativas, mais simbolistas, carregadas de sugestões cênicas. Sensações que não param de sugerir sentimentos e ideias.