Zênite

Felipe Scovino
Rio de Janeiro, Brasil, 2022
Texto escrito para a exposição “Zênite”, de José Bechara na galeria Simões de Assis, Curitiba, 2022

A relação muito particular da obra de José Bechara com as linguagens construtivas é algo bastante explorado na historiografia sobre o seu trabalho. Gostaria de puxar um fio desse aspecto e tecer comentários mais adensados sobre o que vou chamar de manchas. Um gesto pictórico que é invariavelmente justaposto pelo grid, um índice que acompanha substancialmente a obra desse artista.

Bechara fundou um lugar muito particular na história de uma pintura de tendência construtiva. O artista parte do índice construtivo para explicitar uma experiência fenomenológica. Em suas obras, o grid muitas vezes já está dado. Para os iniciantes em José Bechara, seu trabalho, na maior parte das vezes, é produzido com lonas de caminhão usadas. Sua “tela”, portanto, é algo que já possui uma história, identidade, lugar e memória. Isso também fica evidente quando as palavras que fazem parte da lona são vistas, mesmo que parcialmente, em um esforço em eleger que a sua memória, o seu lugar original, não pode ser perdido. Como se isso não bastasse, o artista faz uso de operações com oxidação de emulsão metálica que criam linhas ou manchas ou então acentuam essas duas demarcações que já estavam presentes na composição da lona trocada com os caminhoneiros. E é exatamente esse ponto que gostaria de ressaltar. Bechara não faz uso apenas – como se isso fosse pouco – de signos da abstração geométrica, em particular o grid, mas também de uma tendência que possui um lastro significativo no panorama da abstração no Brasil: o informalismo. A associação entre a pintura informal e a gestualidade do artista, com o produto dessa ação podendo ser a mancha e a economia de elementos que se mescla com o vazio, a espiritualidade e, em alguns casos, o taoísmo deixou marcas profundas na história da arte brasileira. O fato de Bechara deixar ou pouco interferir nas manchas que são originais da trajetória da lona, aponta um desejo (inconsciente) pela gestualidade. Quero apontar que Bechara não só pensa como um pintor, mas age como sendo um. Ele não se deixa levar por uma atividade mecânica de simplesmente assumir que a pintura está pronta quando tem a lona em suas mãos. Trata-se de um trabalho e pensamento pictórico que se volta para as minúcias. A lona está dada, mas a tela precisa ser trabalhada, tanto no acréscimo de cores e formas (como os grids) quanto na permanência de certas imagens que estavam contidas na tela, mas não eram da ordem da arte. O olho de Bechara é quem promove essa transferência do reino do ordinário, do comum, para a arte, para um terreno de discussões estéticas e fenomenológicas. Nesse sentido, o artista se fixa nos detalhes que esse conjunto de memórias, traços e gestos oferece. Ele diz que são as suas “ocorrências visuais”. Essas manchas não só compõem uma atmosfera abstrata que é a tônica do seu trabalho, mas singularmente são registros da gestualidade do pintor. Em muitos casos, elas não precisam ser pintadas por meio de um pincel, mas eleitas (pelos olhos do artista). É o que Bechara nos ensina.

Lembro que o informalismo foi uma presença marcante na produção das artes plásticas em dois países com os quais Bechara tem relações sedimentadas: a Espanha e o Brasil. Se por aqui, tivemos artistas como Fayga Ostrower, Tomie Ohtake e Iberê Camargo, no país europeu, a inteligência da pintura “informal” de Tàpies foi um legado para as artes. Especialmente Iberê e Tàpies possuem uma pincelada vigorosa e bruta, característica também marcante na obra de Bechara. Não podemos esquecer que a lona vem carregada de um lastro da rua. Há algo sujo, ríspido e violento nesse material. E, sem dúvida, o universo de Bechara é constituído por essa aura. Mas isso que venho chamando de mancha acaba por construir, em certa medida, um contraponto a esse ruído. As manchas são do campo da suavidade, até o limite em que podem se manter autônomas em relação ao que as circunvizinha. Por estarem no segundo ou terceiro plano da pintura, na camada atrás das explorações geométricas, elas são menos visíveis, escandalosas ou ruidosas. É como se outra história estivesse se constituindo em meio às explorações geométricas e o barulho das estradas e toda a carga mais rumorosa que as lonas carregam. Gosto de pensar em como seu trabalho opera histórias, memórias e gestos que são aparentemente distintos, mas que se entrelaçam ao final.

Como escrevi, sua obra passa por uma alta concentração de energia especialmente por conta da origem, daquilo que o trabalho é feito (as lonas). E a transposição dessa energia pode ser vista também, mais recentemente, através da imagem de grandes círculos, invariavelmente vermelhos ou azuis, localizados no centro das pinturas como em Red Zeniths (2021). Não são apenas círculos – inteiriços ou não – mas a revelação de uma força centrífuga que, como um dínamo, parece criar vitalidade, energia e movimento para essas pinturas. Se antes – e ainda continuam – os grids se espraiavam sobre as telas, expandindo suas formas de maneira a exibir sua elasticidade e força, agora a imagem da centrifugação não deixa dúvida sobre o estado de potência latente que essas pinturas desencadeiam.

Outro ponto de vibração, digamos assim, matérico do seu trabalho é o processo de marcação das lonas com as fitas adesivas. A pintura e oxidação no espaço demarcado e o posterior decalque dessas fitas parece deixar aquele lugar vibrando por conta da emulsão e tinta ali aplicadas. Além disso, a oxidação em si já é uma escolha por manter o espaço pictórico em constante transformação. Cria-se uma densidade no lugar em que ela é aplicada que não nos deixa esquecer que a sua pintura tem pulsão de vida.

Nesse sentido, não foi à toa a escolha do título da exposição: Zênite. É mais um dado que reforça não só a atmosfera de energia que essas obras possuem, mas singularmente a capacidade de atração, oscilação, resistência e propagação que é emitida. Nenhum elemento permanece estático, pois tudo está em constante transformação. Os grids flanam pela superfície, as distintas camadas reforçam a ideia de transitoriedade, sem falar na força centrífuga que parece mover e simultaneamente sugar a matéria transformando-a em energia. E o mais evidente nesse conjunto, ao falar sobre mudança, é o processo de oxidação. Como uma experiência biológica, assistimos ao jogo de forças e presença que a emulsão de cobre ou aço, o uso da palha de aço e a corrosão derivada desse processo realizam sobre a superfície da lona. A oxidação cria zonas gráficas e de interferência cromática que atuam de forma contínua e imperceptível.

Outra característica recente em seu trabalho é a presença de cores mais abertas. Em uma pintura (Sem título, 2022), nota-se um enorme círculo vermelho ocupando grande parte da obra. Pairando sobre uma trama com listras verticalizadas oxidadas, o círculo emite uma luz avermelhada pulsante e extremamente atraente. Não só isso. O vermelho, por seu tamanho e intensidade, parece atrair toda a atenção e energia para o seu centro. Posto que a obra já possui outro campo de força que são as próprias listas oxidadas. Eis um exemplo de como a pintura de Bechara negocia seus distintos feixes de movimento e dispêndios de energia. Há algo violentamente sedutor nessa manobra.

Por fim, o conjunto dessas obras evidencia o caráter sinérgico de uma força que coloca em tensão vários elementos. Tudo o que compõe suas pinturas está constantemente pulsando, vibrando e expandindo uma potência infindável.