A Geometria Oxidada de José Bechara

Carlos M. Luis
El Nuevo Herald, Miami, EUA, 2004 (imprensa)

 

 

Se é verdade que nem todos os caminhos da arte moderna levam ao abstracionismo, também é verdade que a arte abstrata abriu à pintura numerosas vias de expressão. A prova disso está na obra do pintor brasileiro José Bechara.

O principal dilema da arte abstrata, uma mudança radical do olhar, se faz presente nas oxidações de José Bechara, oxidações que nos levam a uma redefinição da própria natureza da pintura. Aqui, nesta sua arte aparece um elemento inovador, uma nova forma como substância plástica, como diria Joseph Beuys. Ou, em outras palavras, “uma transfiguração a partir do zero das formas” como Malevich já se propusera. Mas, se o pintor russo leva o tema à sua redução última em uma superfície toda branca ou toda negra, o brasileiro incrementa uma substância, a oxidação, ao gerar sua própria transfiguração em grandes telas como Núpcias, ou Série Mercúrio I & II, nas quais o processo de oxidação se realiza por meio de diferentes pigmentos, construindo interessantes contrastes entre as diferentes áreas dos quadros. É o que vemos em uma tela de grandes dimensões como em Nine females, onde o artista introduz outro elemento – o couro de vaca – para criar uma impressão não de todo desprovida de erotismo. Os planos que dividem a tela produzem um efeito de collage, pois enquanto a composição dos planos superiores se aproxima a um pentagrama, os demais preservam as tênues cores da pele do animal, exibindo ao mesmo tempo traços do corpo feminino.

Na minha opinião, são as oxidações, entretanto, que levam sua interrogação da matéria ao extremo.

Sabemos que a arte abstrata consiste, antes de mais nada, em retirar o objeto do campo do olhar até convertê-lo em pura ausência. É a partir desta ausência, ou deste zero, que o artista abstrato começa a criar sua outra realidade, fazendo surgir uma escrita do invisível. No caso de José Bechara, se nos atermos simplesmente às suas estruturas, descobriremos que não estão distantes das primeiras orientações do chamado neoplasticismo, cujas origens remontam à segunda década do século 20. Toda a construção de sua obra se baseia na estrita arquitetura de linhas, quadrados, retângulos etc., que preenchem os espaços, dando continuidade a este ideal de pureza que o neoplasticismo quis acercar musicalmente às fugas de Bach. Não é, entretanto, neste ponto que se detém a busca. Soma-se à pureza que vemos nos quadros de Mondrian, Theo Van Doesburg, Vantongerloo e outros, um elemento que a transgride: a oxidação. E é aí, a meu ver, que José Bechara abre um novo caminho à arte abstrata.

Bechara em vez de procurar na cor o resultado final de uma composição que principia como pura forma ataca a superfície do quadro, criando com seu processo de oxidação uma substância plástica diferente. Nem efeitos visuais com campos de cor delimitados ao modo de Mondrian, nem tampouco a tela sujeita às manipulações da chamada “arte bruta”. Para o pintor trata-se basicamente de trabalhar as superfícies imbuído do sonho do alquimista ao início de sua obra: o de testemunhar uma transfiguração. O alquimista encerra sua busca ao encontrar a pedra filosofal, enquanto que para Bechara o objetivo está na criação de uma natureza plástica.

Mais que um sonho então, é o procedimento artesanal de uma série de elementos com os quais o artista joga para criar um efeito pictórico. Mas como sói acontecer, esses efeitos entram por diferentes vias do olhar. Para uns permanecerão aí, simples efeitos, enquanto que para outros as oxidações como meio expressivo dão origem a novas especulações. E este processo se une a outros de conotação poética e até metafísica. Para usar um termo caro aos alquimistas: não será este processo algo semelhante ao nigredo, palavra que eles usam como parte do morrer e do renascer da matéria? Não há dúvida de que uma das tantas vias que a arte contemporânea nos abre é a via especulativa, pela qual podemos “fazer voar nossas bolas de cor” como tantas vezes me falou Lezama quando deixava correr solta sua imaginação inesgotável. A forma com que Bechara atua sobre sua matéria o converte, portanto, no agente de uma espécie de vibração primordial, desta que vai deixando impressas na tela as marcas de sua passagem.