Luiz Camillo Osório Rio de Janeiro, 2019 Texto escrito para o catálogo da exposição “Território Oscilante”, de José Bechara na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre – RS, 2019.
Esta reunião de trabalhos de José Bechara expostos na Fundação Iberê Camargo não tem a pretensão de uma retrospectiva. São quase 30 anos de trajetória e este recorte busca dar conta de elementos determinantes de sua poética, sem querer esgotar cada momento e fase de sua obra. Sua formação como pintor ainda na década de 1980 foi logo deslocada por conta de ter tido que se afastar das tintas e solventes. A lona de caminhão usada e as intervenções com oxidações passaram desde o começo da década de 1990 a definir um campo pictórico novo e bastante fértil. A novidade não diz respeito aos materiais, mas ao modo como se apropria deles e mobiliza funções pictóricas singulares. A atenção aos elementos materiais do mundo, a experiência do tempo e suas formas de inscrição na superfície das coisas, constituíram um modo de operação poética que teve a apropriação como método e a precisão como régua.
Se o trabalho com as lonas foi marcante para o que considero o primeiro momento autoral de sua poética, a experimentação com a Casa, iniciada na residência artística de Faxinal do Céu, no interior paranaense, no começo dos anos 2000, disparou uma nova produção, marcados por um uso mais radical do que poderíamos chamar de campo dilatado da pintura, atuando diretamente no espaço.
Em sua exposição de 1998 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, era visível a extrapolação do plano pictórico. Suas oxidações regurgitavam em aglomerações de alta densidade matérica e a escala se monumentalizava, abandonando a escala da parede e interferindo na própria arquitetura. O enfrentamento da sala monumental do museu carioca, obra prima do brutalismo de Reidy, obrigou Bechara a dar musculatura às aglomerações de ferrugem, que se confundiam com as cicatrizes da parede de concreto. As obras e sua carnadura de tempo oxidado pareciam brotadas ali dentro como um bolor cuspido pela parede brutal da sala. Naquele momento um limite teria sido ultrapassado – o da própria parede e do objeto pictórico. Era necessário tirar a pintura deste lugar convencional – sem fazer disso um imperativo, apenas uma necessidade interna da obra. O tempo de decretar qualquer morte para a arte e suas linguagens já caducara há décadas.
A partir deste momento e até a residência de Faxinal do Céu, o trabalho no ateliê foi de enfrentar a inquietação interna até mobilizar novos caminhos. Nesta residência de 2002, junto a dezenas de outros artistas convocados pelo curador Agnaldo Farias, veio a oportunidade de responder a esta demanda colocada pela própria obra. Com uma casa pré-fabricada à sua disposição, ele resolveu experimentar com o próprio mobiliário, cuspindo armários, cadeiras, camas, colchões pelas janelas, dobrando a casa ao avesso. Uma série de fotografias e desenhos foram realizados na ocasião e todo um novo repertório material e poético disponibilizou-se. Por um lado, a fotografia veio garantir a visualização e organizar o gesto que revirou a casa por dentro. Daí se desdobraram, por um lado, uma produção de desenhos rápidos articulando insinuações geométricas a manchas que agitam a superfície de papel. Por outro lado, uma série de esculturas-instalações que disseminam formas cúbicas e objetos-casa, que se assumem como pequenos fragmentos expandidos da célula construtiva de sua poética.
Como um novo lance apropriativo, objetos comuns são reorganizados a partir do gesto plástico e assumem formas mutantes. Como nas suas pinturas e instalações, há uma ação que geometriza e outra que transtorna a forma, um jogo entre equilíbrio e instabilidade. Ao mesmo tempo em que perdem suas funções utilitárias vão se assumindo enquanto forma plástica mutante. A casa se desconstruía como moradia para se reconstruir como unidade geométrica modulada, expandindo-se entre o objeto e a instalação.
Em uma instalação intitulada ok,ok, lets talk, mesas e cadeiras se acumulam e desenham um espaço absurdo onde não se senta, não se conversa e qualquer mediação fica interditada. A impressão meio beckettiana de suspensão comunicativa e densidade expressiva surge da percepção de que o ato plástico está desconectado da produção discursiva. Esta desconexão parece uma metáfora de nossa desorientação cotidiana, onde se fala muito e se compreende pouco. Que o ato poético se afirme antes da voracidade interpretativa.
O próximo passo, foi a utilização de um novo suporte, o vidro. Um material frágil, transparente e de difícil manuseio. O ruído contido, que nas lonas vinha da densidade acumulada do material, aqui é introduzido pela soma de elementos heterogêneos que se combinam pelo conflito e não pela fusão harmoniosa – uma cabeça pendurada, um cubo solto, um volume de papel, um tubo de luz, uma inserção pictórica ou cromática na parede. Tudo se agrega em torno do vidro que é o catalisador plástico da instalação.
De certa maneira, podemos dizer que estas instalações com os vidros sintetizam muito da trajetória poética de José Bechara. Há neles uma compressão expressiva que articula o frágil e o bruto, a impessoalidade e o drama. Coisa que já aparecia nas lonas com a geometria introduzida pela oxidação, mas que aqui se explicita sem cerimônia. A dimensão dramática adquirida pela obra parece-me produzida pela inserção da luz, que assume um papel decisivo: não só pela temperatura que ela dá à instalação, aquecendo o vidro, como pelo jogo de sombras e reflexos que é introduzido. É também aí que a experiência estética, mencionada de início, ganha tonalidades afetivas desconhecidas em sua obra anterior – mais especulativas, mais simbolistas, carregadas de sugestões cênicas.
Uma trajetória que completa três décadas e, assim, já nos deixa ter uma visada mais integrada de caminhos poéticos que foram se desdobrando e se deslocando. Alguns movimentos podem ser vistos aqui, tendo no jogo entre apropriação e construção um princípio produtivo recorrente. Deslizando entre materialidades e efeitos plásticos distintos, este princípio aposta na opacidade inerente à alta modernidade, na qual o dizer e o mostrar estão em tensão constante, sem se isolar dos ruídos à sua volta. Principalmente, ele acredita que a expressão artística não deve se reduzir às formas discursivas, ampliando assim nosso repertório semântico e nossas formas de ver e pensar o mundo contemporâneo.