Blefuscu: 6 pontos sobre o trabalho de José Bechara

Delfim Sardo

Lisboa, Portugal 2007
publicado pela editora Dardo – DS, Espanha, 2008

 
 

1. modelo

Portes

On se protege, on se barricade. Les portes arretent et séparent.
La porte casse l’espace, le scinde, interdit l’osmose, impose le cloisonnement: d’un côté, il y a moi et mon chez moi, le prive, le domestique, (…) de l’autre c^té il y a les autres, le monde, le publique, le politique. On ne peut pas aller de l’un à l’autre en se laissant glisser, on ne passe de l’un à l’autre: il faut un mot de passe, il faut franchir le seuil, il faut montrer patte blanche, il faut communiquer, comme le prisionier communique avec l’exterieur.

 

Assim começa o capítulo sobre “portas” de Espéces d’espaces, livro de Georges Perec de 1974 que é, possivelmente, uma das mais extraordinárias narrativas sobre o espaço já escritas. Indo da cama ao mundo, o percurso que nos é proposto é o do mapeamento das tipologias de espaço em que podemos viver, como se o autor nos inventariasse a última das impossibilidades de definição, a do que nos permite existir como entidades físicas. Nesse sentido, as portas são fronteiras entre diferentes categorias do viver: de um lado de cada porta temos uma instância, de outro lado de uma porta temos outra dimensão. A mais evidente divisão é a que separa o espaço público do espaço privado, ou seja, a fronteira entre o espaço da intimidade e o campo social do político. Por isso, vemos sempre as portas de um lado ou de outro, não existindo um espaço da porta como tal (uma porta ou está aberta ou fechada, como diz um provérbio francês). Pela mesma razão, a obra de Marcel Duchamp de 1927, Porte, numero 11, rue Larrey, é uma poderosa metáfora sobre o carácter transacional da porta, a sua natureza como um não-espaço, uma passagem que recusa qualquer permanência.

As esculturas de pequenas dimensões de José Bechara não possuem portas. Possuem aberturas que, na sua similitude em relação a modelos arquitectónicos, mimetizam janelas. Quer isto dizer que não existe qualquer passagem em relação ao interior nas suas esculturas, são monolitos em explosão, transbordando objectos pelas hipotéticas janelas. A inexistência de portas é significativa: não existe qualquer possibilidade de entendermos os espaços dos seus modelos como espaços habitáveis, porque não são penetráveis, não possuem qualquer possibilidade de penetração. Dito por outras palavras, são modelos de uma interioridade que nos condena à exclusão, ou ao carácter público. Nesse sentido, o nosso lugar diante delas é o lugar do político, da rua, do exterior, do público e nunca podemos ter acesso à sua condição privada. Estamos, defronte a suas pequenas esculturas, como Gulliver à sua chegada a Lilipute: não podemos entrar, não podemos transpor a diferença de escala nem compreender o interior das pequenas construções que compõem o conjunto de peças de José Bechara que se situam no prolongamento natural do projecto Casa.

São, portanto, modelos de impenetrabilidade, estruturas modulares que invariavelmente parecem implicar uma situação de explosão interior, como se o seu conteúdo extravasasse para o nosso espaço, assumindo um carácter liliputiano porque as tipologias dos objectos que saltam das janelas são facilmente reconhecíveis: são mesas, cadeiras, armários, escadas. São objectos que remetem para a dimensão da nossa vivência do espaço, na medida em que a forma como convivemos com o espaço é sempre modulada pela utilização corporal dos objectos que povoam as nossas casas, como o sofá em que preguiçamos, a mesa a que comemos, a cadeira em que nos sentamos. Esses objectos são indissociáveis da própria noção de habitabilidade do espaço. São o que, em última instância, configura a nossa relação com a casa, como uma impressão deixada pelo corpo dos seus habitantes. Assim, o uso por Bechara de modelos de mobiliário possui um carácter fantasmático de invasão do nosso mundo – do mundo público que fica para cá do interior impenetrável das suas pequenas estruturas habitacionais – por uma outra escala que, de qualquer forma, mantém uma memória sobrevivente de uma outra vida, de um espaço interior. Essa outra vida, especulativa e pequena, salta, no entanto, permanentemente, para o espaço real, como uma pequena ameaça, válida pela verosimilhança da escala.

 

2. estrutura

Os modelos de Bechara são, estruturalmente, construídos com a utilização de três elementos principais: o paralelepípedo, que configura o que vemos como uma casa, com as suas janelas e sem portas; o mobiliário, que extravasa para o nosso espaço, com uma escala coerente em relação à tipologia “casa” do primeiro género de elementos; e uma terceira tipologia, um paralelepípedo em outline, ou uma estrutura que é, frequentemente, a de um cubo, sempre maior do que a “casa” e que se relaciona com esta: ou a envolve, total ou parcialmente, ou está em frente, ou se encontra numa espécie de desequilíbrio controlado, por vezes usando os pequenos modelos de móveis como suporte.

Essa estrutura paralelepipédica ou cúbica é intrigante. Por um lado, é um elemento abstracto, porque não figura, ao contrário dos outros elementos, nem um objecto do mundo rigorosamente fac-similado (como acontece com as pequenas mesas, gavetas ou estantes), nem um objecto do mundo sugerido (como o cubo que, por via da sugestão de janelas, é lido como uma casa). Quando muito, é percepcionado como um cubo ou o seu desenho tridimensional no espaço, mas essa identificação não é processada como uma maquetização, mas como uma coisa em si: um cubo é um cubo, não é uma representação de um cubo. Por outro lado, esse elemento é visivelmente fundamental na lógica construtiva das peças de Bechara, porque transforma a dimensão de modelo numa dimensão escultórica.

Quer isso dizer que o carácter modelar e modular das esculturas de Bechara repousa sobre uma impossível contradição: são modelos de obras que poderiam ser de uma outra escala, na medida em que a sua relação connosco é estabelecida pelo processo de reconhecimento em relação à tipologia dos objectos: uma mesa é um objecto que possui determinada escala em relação ao nosso corpo; se vemos uma mesa com 15 cm de altura sabemos que estamos diante de um substituto, um modelo. Um cubo, no entanto, não possui nunca qualquer escala. Possui, evidentemente, uma dimensão, mas a ela não corresponde nenhuma escala, a não ser que se relacione voluntariamente com uma dimensão arquitectónica, corporal ou objectual, ou seja: ou é passível de manipulação, ou é um alter para o nosso corpo, ou possui uma relação arquitectónica com o edificado. No caso das esculturas de José Bechara, a sua relação é estabelecida com um modelo, o que quer dizer que a relação funcional de uso de um objecto abstracto como um cubo desenhado, fisicamente, no espaço, se desvincula da relação corporal com o espectador para passar a estabelecer uma relação interna na economia compositiva do modelo que é, por essa via, convertido em escultura. Poderemos assim dizer que a estrutura de modelo converte-se numa estrutura modular, a partir de módulos de articulação situados em dois níveis – como reconhecimento e como puro processo especulativo espacial.

Por outro lado, a condição de modelo remete ainda para duas instâncias temporais diversas e contraditórias. Um modelo é um ensaio prospectivo de um espaço a edificar em escala 1:1 ou, então, é uma memória reproduzida de um espaço que existe na sua escala natural, posteriormente reconvertido em objecto que remete para algo que está, naturalmente, fora de si. No caso das esculturas de Bechara não existe nenhum “fora-de-si”, nem tão pouco nenhum antecedente, se exceptuarmos o projecto Casa que, de qualquer forma, funciona como uma matriz a partir da qual se desenvolve a combinatória dos seus modelos.

Assim, são estruturas que desenvolvem uma interdependência entre uma operação de reconhecimento e uma forma autoportante, funcionando como modelos contraditórios, e duplamente. Daí o seu estatuto dúplice, reforçado por serem também, elas mesmas, objecto de uma outra instância de registo artístico, a fotografia, também ela usada como obra por seu próprio direito.

 

3. estranheza

A ausência de portas nas esculturas de Bechara evoca uma situação que é tipificada por Anthony Vidler como o “estranho arquitectónico”. Ao efectuar um mapa das diferentes formulações do estranho desde os contos de E.T.A. Hoffmann (e a sua consequência na formulação de Sigmund Freud, que acabou por cunhar o conceito com as suas enormes sequelas no mundo artístico), a sua atenção detém-se, no entanto, na descrição da casa de Usher do conto homônimo de Edgar Allan Poe.

A casa é descrita pela sua inadequação, pela inexistência de qualquer contacto com o exterior, quase uma personificação arquitectónica do isolamento e do sinistro. Claro que o contexto do texto de Vidler nasce de um entendimento do gótico na literatura e a sua consequência, na personificação da arquitectura da casa, de que a Casa de Usher será um exemplo cabal. No contexto dessa personificação do estranho arquitectónico, a ausência autista de portas e o surgimento de janelas que se abrem cegas para um interior impenetrável são como olhos vazados, sinais de uma caixa fechada sobre si mesma. Essa tipologia do estranho associado à impenetrabilidade, a um olhar que, cego, não possui nenhuma transparência para a alma, está também associado à ideia de unhomely. Este termo, provavelmente intraduzível para português, remete literalmente para o termo alemão unheimlich, reforçando a ideia de des-pertença que lhe está associada – e não só a vivência psicológica da estranheza. Num sentido muito literal, a inadequação à pertença da casa e do habitar é uma das importantes tónicas da arte contemporânea, nos antípodas da nostalgia heideggeriana de uma vivência do mundo enraizada – mesmo se o pensamento de Heidegger em 1947 pode ser sempre visto como um pensamento cínico. O que é facto é que o pensamento moderno é sobre a falta de pertença, ou essa é a mais destacada marca das vanguardas, sobretudo na forma como é entendida a relação de ligação entre o corpo e o espaço e, neste amplexo, entre o corpo e o espaço de habitação.

Esse hiato entre o corpo e o seu espaço tem vindo a ser preenchido por uma sensação permanente de nomadismo e, por consequência, de ausência de lar, no sentido em que este é o lugar da pertença. É nesse quadro de pensamento que pode ser compreendida a relação de inacessibilidade e de explosão das obras de José Bechara. Se, nos seus modelos, a inacessibilidade do interior é compensada por uma saída em relação ao nosso mundo, um processo intrusivo (mesmo se convertido à sua versão liliputiana), que se converte numa desestruturação do espaço circundante, esse dispositivo converte a questão da inadequação num problema de conflitualidade entre a proposta da escultura como habitação e o carácter projectivo corporal que a ideia de modelo ou maquete instaram.

 

4. corpo

Em última instância, a repercussão corporal das obras escultóricas de José Bechara exerce-se sobre determinada dimensão de desmembramento da corporalidade. Claro que a metáfora arquitectónica que as suas obras geram aponta para um modelo de corpo que não é o corpo a que alude Vitruvio na sua relação orgânica entre arquitectura e corpo, o modelo humanista que balizou as relações metafóricas entre arte e arquitectura. É um outro corpo, um corpo despedaçado e fragmentado, um corpo em trânsito e nómada. Se, em alguns casos do contexto arquitectónico, a desconstrução está indexada a um questionamento do modelo corporal a partir de uma metáfora de corpo biónico, disruptivo e não-humano, no caso das artes visuais – e José Bechara pertence a esta genealogia –, a tendência de reinterpretar a corporalidade passa-se ao nível da proposta de experiências disruptivas para o sujeito a partir da ideia de sujeito em deslocação no espaço, confrontado com propostas corporalizadas perturbadoras dos mecanismos de pertença e reconhecimento. No caso de José Bechara, a sua linha de trabalho escultórico implica uma visão que é, simultaneamente, vernacular e culturalmente implicada. Quer isto dizer que os seus processos de reconhecimento são proporcionados por uma intensa ligação a estruturas flexíveis de construção ou edificação, muito próximas de uma tradição do segundo modernismo brasileiro de uso e imersão nos sistemas reticulares e orgânicos da arquitectura da pobreza, importantes para toda uma geração de artistas que remonta ao trabalho pioneiro de Hélio Oiticica. No entanto, a especificidade desta abordagem reside no cruzamento fluido que existe, no eixo nascido do neoconcretismo, numa justaposição entre uma lógica figurativa e corporal e o uso de uma linguagem do rigor, da geometria, descarnada.

É nessa confluência entre edificação entrópica e ordenação compositiva que nasce o procedimento construtivo de Bechara, levantando uma questão entre a dimensão da representação e a compulsão da presença, de que os modelos não abdicam.

 

5. construção x desmembramento

A dicotomia entre construção e o seu contrário (a que Gordon Matta-Clark chamou unbuild) possui uma longa tradição no domínio da prática artística no campo das vanguardas, remontando ao período da Grande Experiência Russa, entre os anos de 1915 e 1927.

De facto, no período compreendido, simbolicamente, entre a exposição de Petrogrado de 1915, na qual se definiram as duas linhas fracturantes das vanguardas russas – o suprematismo de Malevitch e o embrião construtivo de Vladimir Tatlin – e o surgimento da exposição como destino exclusivo do trabalho de Lazar El Lissitzky e Rodchenko, define-se um campo de intervenção no qual se cruzam arquitectura, design e escultura na direcção do estabelecimento de um campo alargado de práticas artísticas sob a égide da ideia de “espaço real”.

Nesse contexto estamos perante um grupo de artistas que defende um ponto de vista de fusão entre escultura e arquitectura sob a égide da funcionalidade, do propósito. Aliás, para o primeiro grupo de construtivistas em redor de Rodchenko e Alexei Gan, o termo usado para a definição do seu ponto de vista é Konstruktivisty. Ora, o termo é derivado de Konstruktor que, em russo, quer dizer um especialista, no mesmo sentido que hoje falamos de um especialista em engenharia electrónica, para usar a comparação que efectua Catherine Cooke. A actividade construtivista, portanto, liga-se mais intensamente à actividade de idealização, de concepção e planificação do que à actividade braçal da construção. Nesse sentido, embora não exista qualquer diminuição da ideia de trabalho braçal, há uma clara tónica na ideia de que a actividade artística é uma actividade de projecto, com mais similitudes em relação à engenharia e à arquitectura do que à tradição do fazer.

Assim, se existe nesses artistas uma influência de Bogdanov, o rival de Lenine e criador do Proletkult, a matriz que os seus projectos escultóricos segue é, sem dúvida, uma matriz arquitectónica, ligada e inter-relacionada com o desenvolvimento de uma cultura de projecto que se encontra particularmente clara nas palavras de um dos mais notáveis arquitectos desse período, Moisei Ginzburg:

Não pode haver qualquer questão no facto de o artista perder criatividade só por saber o que quer, o que pretende e no que consiste o sentido do seu trabalho. Mas o inconsciente, a intuição, o impulso criativo devem ser substituídos por um método claro e organizado, que é económico da energia do arquitecto…

Esse ponto de vista, se bem que mitigado pela prática artística, está claramente presente no nascimento de uma cultura de projecto que, decididamente, contamina a escultura e a faz usar a arquitectura como um dispositivo. Poderemos mesmo dizer que a arquitectura transforma-se, nesse grupo de artistas, no transcendental da escultura, isto é, a escultura só pode existir via a arquitectura.

Porventura o modelo paradigmático deste pensamento será o Monumento à Terceira Internacional de Vladimir Tatlin, de 1919. O projecto foi concebido enquanto Tatlin trabalhava para a Secção de Belas-Artes do Comissariado para as Luzes de Lunacharsky e montado no 8º Congresso dos Sovietes de 1920. De notar que, no congresso, havia uma folha distribuída aos congressistas que explicava o Monumento, com o título “O trabalho que nos confronta”. Nesse documento era efetuada uma demissão da arte burguesa, que pretendia ilustrar a revolução e atribuía ao Monumento a tarefa de demonstrar como existia uma possibilidade holística para as artes, numa reunião da arquitectura, da escultura e da pintura. No ano seguinte, essa tônica viria a afectar todo o grupo do Inkhuk (Instituto para as Artes), havendo o estabelecimento, no seu seio, de um grupo construtivista. Os debates e os aprofundamentos que se seguiram são interessantes sobretudo a partir da definição dos seus conceitos centrais, nomeadamente os de Tektonika, Konstruksia e Factura. O primeiro conceito diz respeito ao elo orgânico entre valores políticos e técnicas industriais. Factura diz respeito aos valores específicos dos materiais usados. Konstruksia é a formulação levada ao extremo, isto é, a performatividade do projecto.

Em um prazo muito rápido tinha-se constituído um grupo de artistas que, trabalhando sistematicamente tridimensionalidades, estava pronto a efectuar uma síntese entre a génese da linguística estruturalista (sob a influência de Roman Jacobson), um procedimento projetual e um primado material. A escultura tinha-se transformado em construção social.

Assim, a escultura parecia não poder ser outra coisa senão uma metáfora de si mesma ou uma insistência no processo de transformação colectiva, tendo, portanto, no espaço público o seu único campo de actuação. Quando não é intervenção no espaço público, então será certamente maquete, modelo, como se passou com Vantongerloo. Se quisermos, a escultura, através desse processo de “arquitecturialização”, passa a possuir uma escala natural, que é a escala do próprio corpo, não pela antropomorfia, mas pela metáfora da efectiva utilização. Essa tónica é, na realidade, particularmente importante nesse período, que assiste, como vimos, à utilização do termo “espaço real”, que Lissitzky introduz na sua conferência no Inkhuk em 1923. Curiosamente, o termo “espaço real” é usado por Lazar El Lissitzky em referência a Malevitch, dizendo que a sua obra de 1913 (o Quadrado negro sobre fundo branco) tinha acabado com a era da representação e tinha inaugurado o espaço real, que era, agora, um espaço já não euclidiano, mas um espaço que se define a partir de uma noção de temporalidade. Não sendo um constructivista stricto senso, nomeadamente porque o primado da utilidade sempre lhe pareceu desajustado, existe, no entanto, no percurso de Lissitzky, um processo de expansão da escultura em direcção a um trabalho sobre o espaço num contexto de globalização da experiência a partir de uma tónica projectual.

Ora, este projecto é, progressivamente, o de um desmembramento do espaço, ou seja, o da sua configuração como um espaço anamórfico de um corpo que é transitório, quanto mais não seja porque é o corpo utópico da revolução, o corpo a refazer como seu processo.

 

6. explosão

A cena final de Zabrisky Point, o primeiro filme americano de Michelangelo Antonioni, está inscrita como um engrama em todos os que têm um interesse nos processos espaciais do cinema e da imagem projectada. Durante longos minutos o espectador vê explosões, primeiro em tempo real, depois em câmara lenta. O que explode é uma casa modernista no deserto de Mohdjave e, dentro dela, tudo o que configura a nossa habitabilidade: mobiliário, objectos, livros.

A obra de José Bechara é, por fim, uma extensão reificada desse processo de explosão. Podemos entender essa eclosão de várias formas: quer como um comentário interno aos processos da própria escultura, quer como uma intervenção no terreno muito mais lato do comentário cultural e social.

A eclosão não é puramente a destruição contracultural do espaço moderno. É também, no seu caso, uma figuração barroca brasileira do excesso do habitar, tomado do ponto de vista radical da impossibilidade. Se tomarmos um pouco mais de atenção aos seus modelos, eles configuram uma dobra de sentido em vários níveis: já falamos da questão da escala e da sua antinomia entre a dimensão ontológica do modelo e da obra; propusemos o seu entendimento como um cruzamento, com raízes na tradição neoconcreta brasileira, entre a vernacularidade do espaço e a tipologia formal/compositiva; já localizamos a questão da metáfora de desmembramento corporal que a configuração desconstrutiva possibilita.

Por fim, poderemos tentar compreender o exercício de extravasamento proposto por Bechara como uma incursão no terreno do excesso a partir de uma matriz barroca. De facto, o barroco define-se pela qualidade do excesso, permanentemente transbordante, entre diversas instâncias de entendimento do espaço. No Brasil, o barroco possui essa mesma qualidade, associada a uma versão mais incisiva da carnalidade ou, se quisermos, a um mais denso mergulho no carácter directamente físico do corpo que se desdobra. Essa mesma complexidade é vinculada por diversos autores a uma outra dimensão, a da vivência multicultural e liminar de uma corporalidade convertida em espaço.

Por isso, a passagem de um interior para o seu exterior (que é o nosso interior), de uma multiplicidade de módulos de metáfora corporal, representa uma demultiplicação reificada de um sentido que se pretende transitório, de passagem e, portanto, desterritorializado.

É no corpo e no seu contrário, o espaço inabitado, que se situa a proposta de José Bechara, partindo do princípio de que um corpo só existe, como dizia Sartre e lembra Vidler, porque tem uma casa. A desterritorialização e a inabitabilidade da explosão são, também, a explosão barroca do corpo. Mesmo em modelo.

Por outras palavras, se a dimensão liliputiana dos modelos de Bechara não afecta a sua eficácia excessiva, é porque eles se reportam sempre a uma alteridade: a um outro espaço, a um outro corpo, a um outro lugar. Lilipute não será certamente. Talvez Blefuscu, a outra ilha onde Gulliver nunca foi.

 

 

Delfim Sardo, licenciado em filosofia pela Universidade de Coimbra, dedicou-se à teoria e crítica da arte, bem como à curadoria de exposições de arte contemporânea.