Essa Casa de Bechara

Paulo Sergio Duarte

Óbidos, Portugal 2005
Em A Casa, publicado por Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 2006

 
 

A casa não é uma casa. É caixa que dela expulsam os objetos. A casa-caixa cospe camas, cadeiras, mesas. Já foi realizada no Paraná, numa versão realista. O objeto era uma casa mesmo e cuspia móveis. Outra, muito caprichada e que por isso mesmo resultou num arranjo-instalação – era um mero exercício –, aconteceu no Paço Imperial, no Rio de Janeiro.

Nesta nova versão, Bechara assume a sua experiência pictórica e a transporta para a escultura. É uma espécie de monocromático praticado no espaço. Esses aspectos plásticos, entretanto, diante da vontade de vertigem são tão pequenos, menores.

A aparência é periférica diante da força que atua com toda evidência. Quem expulsa os móveis e objetos da casa? A vontade de vazio, a ausência de sujeito, ou justamente o contrário? De tão massacrado, o sujeito atua na produção do vazio no mundo sobrecarregado de objetos. Sim, esse é o caminho para pensarmos a casa que cospe suas coisas. Aprendemos que os objetos são uma construção do sujeito. Este atua na invenção das estruturas que constituem os objetos. Essa apreensão-invenção motivou um casamento: subjetividade e realidade andaram de mãos dadas durante toda a construção do conhecimento. Um dia, as forças coletivas agiram mais rápidas. Estavam organizadas na divisão social do trabalho: a matéria-prima extraída na Índia ou no Brasil era processada em Liverpool por máquinas feitas em Manchester. Também do outro lado, o indivíduo empreendedor se dissolveu nas estruturas técnicas de gestão, e o capital se acumulava nas poupanças do trabalho para formar as sociedades anônimas.

Foi nessa história que o sujeito desapareceu para dar lugar às virtudes da linguagem. Aquela que nos precede, na qual somos inscritos independente de qualquer vontade, sem consulta prévia a qualquer desejo. Pobres sujeitos desaparecidos foram rebaixados a pequenas forças desejantes: poderes de enfermaria, de policiais da esquina, carimbos de burocratas, traficantes da favela, gangues de bem-nascidos. Tudo contra os micropoderes. Enquanto isso um novo poder se constituía: a velocidade de circulação do capital sem respeito a qualquer fronteira. Aquele trabalho físico, distante do trabalho mental, sem produzir valor, arruma ruas, lava roupas, limpa as casas. Resíduo de mais-valia, excluído da produção, procura na casa a razão de sua existência vazia.

É o indivíduo desesperado, consciente da existência, preso na teia da linguagem, que em sua força suprema produz seu próprio espaço. Lugar guardado entre quatro paredes sem nada para ocupá-lo. Sem cama, cadeira ou sofá; uma casa mero habitat. Morada do ser que se basta naquilo que tem a dizer. Por isso essa força que expulsa o que vemos para continuarmos a sonhar com a força do que vem a ser.

 

 

Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, professor da escola de Artes Visuais do Parque Lage e das Faculdades Candido Mendes, Rio de Janeiro Brasil. Autor de diversos livros destacando-se Anos 60, Transformações da Arte no Brasil .