Janela para o universo

Beate Reinfenscheid
Koblenz, Alemanha, 2019.
Em “Território Oscilante”, publicado pela editora Barléu. Tradução Kristina Mechaelles.

Olhar através de uma janela não significa apenas abrir a própria perspectiva e ampliá-la para outra. Implica a capacidade, daquele que busca ativamente esse olhar, de se abrir de dentro para fora para algo inteiramente diferente. Aquilo que se abre dentro dessa pessoa se coloca como oportunidade de harmonizar o próprio interior com o exterior ou de experimentá-lo como uma potencialização do limite (espaço interno) e da falta de limites (espaço exterior). A literatura e a história da arte estão cheias desses momentos de reflexão, que culminam principalmente no período romântico, quando a janela e o olhar para fora começam a ser compreendidos como sinônimo da alma. A estreiteza da casa se desfaz dos limites na mirada para a paisagem vista da janela, a qual, na obra de arte, abre para o “eu” observador uma tela de projeção dos anseios e desejos de cada um.

Um dos exemplos mais impressionantes é a pintura Caroline à janela (Caroline am Fenster), de Caspar David Friedrich (1822), na qual ele formula o acanhamento do seu ateliê através da visão parcial para fora, sugerindo apenas alguns poucos motivos: a ponta do mastro de um veleiro e um céu límpido. Sua mulher Caroline, retratada de costas, impede parte da visão, fazendo com que, de fato, o céu se torne o verdadeiro tema da projeção externa. Nesse contexto, tornam-se relevantes os contrastes fortes entre escuro e claro, interligados por nuances gradativas de cores; a execução artesanal quase obsessiva, bem como a riqueza naturalista de detalhes e, naturalmente, a inevitável e acachapante impressão de que esse quadro se esforça com intensidade em nos comunicar algo sobre o universo espiritual e não sobre o mundo efetivamente visível.

Na época seguinte, a janela costuma ser tematizada enquanto meio que conduz para fora dos limites da estreiteza, tornando visíveis amplos espaços. Como descreve o historiador da arte Erwin Panofsky, ocorre uma “consolidação do mundo exterior” dentro do quadro. O observador deve perceber o quadro na parede como uma “janela aberta” que lhe permite a mirada para um outro mundo. Ele já não contempla mais o quadro, mas é como se olhasse através dele, relegando ao esquecimento a materialidade do quadro e a sua superfície pintada. Através de sua organização pictórica, os pintores da Renascença declararam a metáfora da janela de Alberti como paradigma da arte pictórica ocidental.

Se, no século 19, a representação da janela na obra de arte ainda estava estritamente ligada à realidade visível, no início do século 20 se modificou de modo fundamental, sobretudo através dos quadros com janelas de Robert Delaunay; as aquarelas de Paul Klee, produzidas durante a viagem à Tunísia; bem como, finalmente, o quadro Porte-fenêtre à Collioure de Henri Matisse, de 1914, ou ainda French Widow de Marcel Duchamp, de 1921, aparentemente perdendo importância depois de 1945. Tendo deixado, há muito, de ser o espelho de mundo interior versus mundo exterior – ou, como no período romântico, sinônimo da abertura para uma vivência religiosa/espiritual – conserva, assim mesmo, a força de uma transição entre diversos níveis de percepção dos espaços.

Em planos bem diferentes e através de múltiplos meios técnicos, José Bechara gira em torno da ideia de voltar a desafiar a percepção do tempo e do espaço, conduzindo o observador até fronteiras desconhecidas da arte. Começou, vinte anos atrás, com quadros cuja finalidade parecem ser texturas pictóricas abstratas. À maneira dos artistas da arte concreta, bem como dos representantes da arte povera, Bechara inclui novos materiais em sua pintura. Utilizando sobretudo óxidos de ferro, obtém uma textura que, com o tempo e determinadas condições ambientais, transforma-se em um traçado enferrujado.

Através do processo de oxidação com oxigênio, este adquire outra coloração. Assim como nas esculturas feitas em aço corten, surge na tela uma pátina rebelde que possibilita e integra no próprio quadro a ocorrência de processos de mutação. Em suas obras pictóricas, José Bechara formula uma densa trama de áreas e padrões, de linhas gráficas que, em alternância com as partes mais pictóricas, concretizam menos o espaço pintado, mas, antes, fazem-no parecer permeável e menos nítido. Em seu cerne, a pintura sempre gira em torno dessa diferença entre espaço concreto e abstrato, provocado pelo jogo entre linhas retas – as quais, como nos contextos arquitetônicos, são capazes de criar perspectivas – e amplas áreas pintadas que, só pelas superfícies coloridas e as profundidades que lhe são imanentes, fazem imaginar o espaço. A superfície e a estrutura de linhas se condicionam de um modo tão contraditório quanto mutuamente potencializador. As linhas, por si só, sugerem um adensamento espaciais, sobretudo considerando a densidade e a quantidade com que se inscrevem na pintura de Bechara, às vezes como uma rede de tramas finas. Essa conjugação de padrões espaciais e a falta de nitidez no conjunto pictórico de suas composições pode ser lida como uma busca de respostas em um tempo marcado pela vida urbana, de frias metrópoles nas quais os espaços vitais são cada vez mais asfixiados e os espaços intermediários e de transição impedem ver a vastidão. O olhar libertador para a vastidão se tornou impossível, e Bechara gosta de ressaltar a urbanidade salpicando momentos do mundo dos transportes, inserindo – e não ocultando – elementos de planos de transportes ou suas costuras. São apenas lampejos, momentos que se acendem para o observador – como uma alusão para dar asas à força imaginativa e continuar se embaralhando na barafunda das linhas. Sempre, no entanto, tudo vem emoldurado por um continuum de cores indiferente, que parece desconhecer limites ou não quer designá-los. Em poucas gradações, alternam-se sutis tonalidades marrons, ocres, amarelos e azul-turquesa, os quais, por sua vez, modelam o espectro do aço que enferruja.

É nas instalações esculturais de Bechara que se torna especialmente evidente com que intensidade o artista se preocupa com a penetração do espaço. Com seus cubos e quadrados, continua desenvolvendo a linha, formulando formas geométricas singelas que, em razão de suas esguias pontes gráficas, parece um desenho no espaço. Ligeiras, escalam alturas vertiginosas ou se estendem, calmas, pela vastidão. O alumínio prateado adapta as cores do espaço à volta, absorvendo-as totalmente, por vezes, ou então refletindo e ofuscando a clara luz do sol. Com seus cubos abertos, Bechara encena o espaço enquanto sistema modular, possibilitando diversos níveis de percepção, como em sua pintura. Também aqui, a permeabilidade é o verdadeiro móvel de Bechara.

Tudo isso fica ainda mais enérgico em 2015, quando José Bechara começa a trabalhar com vidro. Trata-se de uma sequência coerente daquilo que já ocorria em sua pintura e nas instalações esculturais.  É bem verdade que o vidro oferece outro tipo de resistência e não se deixa inserir em algo que o material não permite. Ao contrário do que ocorre com a pintura – a qual, por definição, permite espaços de interpretação por parte do observador – o vidro puro se opõe a tais acessos. Enquanto superfície dura – ora refletindo, ora apenas transparente – representa apenas a si próprio. Entra em uma relação simbiótica com o espaço, assimilando-se até se tornar irreconhecível, em especial quando não é utilizado em sua função de janela, como ocorre no caso das obras de Bechara. Ele usa as superfícies de vidro para escalonar o espaço de modo quase invisível, porém enquanto resistência real. Bechara encena os vidros como formatos de pinturas e as coloca em camadas, como os trabalhos de François Morellet, que escapam de modo lúdico à lógica rígida da geometria. Também as obras em vidro de Gerhard Richter parecem fornecer uma superfície própria de projeção, que Bechara cita de forma reflexiva, sem, porém, acentuá-la de modo totalmente diferente. Em 1964, Gerhard Richter já expôs seu primeiro trabalho com vidro (Vier Glasscheiben = Quatro vidros, 1964), retomando, de maneira indireta, o motivo da janela. No caso, porém, colocadas em uma posição diagonal através de dobradiças, os vidros da janela se opõem à função de se olhar através delas e, assim, a construção têm o efeito de uma escultura aberta. Não se consegue olhar através do vidro e o observador logo se defronta com os limites dos muros e com reflexos que impedem a transparência. Richter calcula de modo arbitrário essa irritação, potencializando-a da mesma maneira em suas pinturas que tematizam a janela.

 “Com suas obras em vidro, Richter parece querer marcar nada menos do que o fim da pintura, dando um passo além das suas Janelas de sombra (Schattenfenster).” Dessa maneira, Richter estaria eliminando o conflito entre realidade e ilusão, que durante séculos a pintura manteve pouco nítido. Formula de modo coerente o fim da ilusão em seus Quadros cinzentos (Graue Bilder), do  início dos anos 1970, voltando a enfatizá-lo no recente trabalho em vidro de 2013, Sieben Scheiben (Kartenhaus) [Sete vidraças, castelo de cartas], que pode ser visto no museu Barberini em Potsdam, e no qual contrapõe em camadas o vidro claro como cristal. Ali, a fragilidade e a estabilidade entram em equilíbrio delicado, formando uma separação visível entre o espaço museal e aquele formado pelas próprias sete vidraças – um espaço dentro do espaço, uma casa dentro da casa. Mesmo assim, a permeabilidade do vidro é, ao mesmo tempo, limite e falta de limite. 

José Bechara se aproveita da mesma maneira desses níveis da percepção, apresentando ao observados as possibilidades de experiencias espaciais com as obras em vidro de maneira tão fria quanto racional. É bem verdade que ele procede de maneira mais pictórica do que Richter, sobretudo quando inclui fontes luminosas e pergaminho leitoso, ou nas esculturas. Bechara configura em camadas os níveis espaciais e conduz a sua pintura para a racionalidade da experiência física. Mas enquanto Richter suprime  em grande medida qualquer emoção, Bechara conserva as emoções que podem detonar cores, luz e a profundidade espacial no observador. O artista conduz o espaço da realidade terrena para a cósmica quando, em sua instalação Angelas (exibida em 2017 na mostra do Museu de Arte Moderna) faz flutuar três bolas de mármore e, mais uma vez, insere as vidraças na frente e no meio, como se fossem filtros. O peso das bolas de mármore e das vidraças se torna perceptível e palpável, sendo, ao mesmo tempo, negado pela flutuação no espaço. De novo, os reflexos provocados na superfície dos vidros brincam com a falta de nitidez do próprio espaço em que o observador se encontra, pois os numerosos reflexos são como que inseridos no continuum de realidade e reflexos nas camadas e nos níveis espaciais que o observador percebe e dos quais quer se apropriar, ordenando-os. As esferas de mármore lembram inevitavelmente os planetas, e o fato de flutuarem no espaço sugere o movimento dos astros na infinitude do universo. Nesse trabalho, José Bechara abarca as fantasias de dimensões espaciais que, no universo, parecem se dissolver na falta de limites. É a ideia do cosmos enquanto espaço da absoluta falta de limites, da supressão de todas as formas de limites e fronteiras. No plano espiritual, ele é assim para muita gente que crê na ação divina, e ao mesmo tempo, enquanto realidade física. Bechara retoma aqui a vidraça enquanto reminiscência da janela que abre a visão para um outro mundo. Ao contrário dos românticos, não sugere um mundo que se espera a dimensão espiritual, figurando enquanto superfície de projeção para os anseios, e sim enquanto dado de realidade. Ele não ilude nada que o próprio observador não possa processar. Mesmo assim, em suas obras dominam a qualidade estética, bem como a força poética de suas instalações e de suas pinturas. Para além do espaço factual e da racionalidade de seus materiais, cabe à força poética dos quadros criados por Bechara no espaço e no tempo dar asas à imaginação do observador.  O motivo da janela serve a ele como espaço de passagem entre o tempo de agora e os espaços imaginados, sendo que esses só são importantes para ele enquanto referência. À dimensão real dos dados factuais, Bechara acrescenta a força imaginativa do “eu“ observador, cuja fantasia e cuja razão configuram uma simbiose da vida real e surreal. Para Bechara, toda a sua ação permanece sendo um reflexo de conhecimentos racionais e da ligação com a realidade, servindo à sua busca pelo último olhar sobre um continuum espacial que consegue parecer mais pensável do que o cérebro humano é capaz de imaginar.  As estruturas permeáveis de imagem e do espaço oferecem caminhos para que o observador construa uma relação com elas em seu pensamento e suas emoções, tendo como parâmetro o universo. Nesta supremacia de interligações espaciais, as obras de Bechara nos fornecem claros modelos de ideias e de vivências, os quais, por sua vez, desenvolvem toda a força de uma encenação poética e da penetração pictórica. O vidro, para ele, torna-se citação do motivo da janela transmitido, sendo que ele não separa em primeiro plano um interior de um exterior, mas antes cria passagens para a percepção. Para ele, o interior e o exterior já não são mais diametralmente diferentes, mas apenas designam diferenças graduais no grande continuum de espaço e tempo. Dessa maneira, Bechara reflete de múltiplas maneiras o aqui e o agora, transpondo-os simultaneamente para a realidade de um espaço universal infinitamente interpenetrado, cujas limitações não barra a nossa percepção, apesar da contemporaneidade real. Em última análise, todas as suas obras giram em torno dessa ideia extrema de um espaço sem limites.(