O sumo da violência

Agnaldo Farias

São Paulo, Brasil
Em A Casa, publicado por Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 2006

 
 

Os tempos estão pesados. É mesmo provável que neste momento esteja acontecendo um outro tiroteio na cidade do Rio de Janeiro. Só lá? Até porque o Rio sequer é a metrópole mais violenta do país. Apenas que nela a violência soa mais discrepante do que em qualquer outro lugar, como se tudo isso fosse um desvio improvável na cidade festejada com justiça como o melhor símbolo de um “abençoado por Deus e bonito por natureza”. E quando ocorreu esse desvio? Em que momento o Brasil desandou? Aí está uma resposta difícil de ser dada e serão muitos aqueles que atinarão para fatores distintos, passagens e conjunturas do passado recente do país, como o ponto de inflexão na vida desse quase continente paradisíaco, povoado por gente conhecida por alegre e cordial, dotada de um otimismo crônico, possivelmente atávico. Sempre se poderá culpar a globalização, a ditadura militar, a sucessão de programas econômicos desastrados e que confluíram para a criação de desigualdades sociais intoleráveis, e até mesmo para uma corrupção que se estende aos confins do Brasil colônia, já denunciada por Gregório de Matos Guerra no século XVII, o poeta que lançou o epíteto definitivo à sua terra natal: “Triste Bahia, o quão dessemelhante”.

Mas o fato é que a atmosfera anda pesada, a violência perpassa os espíritos em versões variadas, algumas delas silenciosas embora avassaladoramente sufocantes, abalando qualquer ilusão de que exista um refúgio seguro, a começar por sua expressão mais essencial, a casa. Sensação confirmada pela “Casa” que José Bechara expôs no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ainda que ela esteja longe de ser uma ilustração literal dessa situação. A rigor, em se tratando de um artista como José Bechara, nunca se poderá dizer ao certo se a violência que impregna sua obra vem de dentro ou de fora. Haverá sempre a suspeita que ele seria o mesmo ainda que trabalhasse na Suíça ou em algum desses países cuja tranqüilidade soa-nos, ao menos para nós, brasileiros, exasperante. Seja como for, o que não se quer aqui é insistir na noção de uma expressão que não estabelece nenhuma forma de contato com o mundo. Afinal, mesmo a música, expressão aparentemente mais “desconectada” do real, pode ser o sintoma de algo inquietante, a irrupção de uma violência que nos ronda silenciosamente até nos surpreender quebrando aos socos os vidros finos com os quais nos pretendemos protegidos. Basta ver a música de um Beethoven ou de um Wagner. Basta ver o Rio de Janeiro, cuja opulência espiritual faz coro com o calor tão espesso e úmido que amadurece as frutas com a mesma velocidade com que as converte numa massa disforme e com o perfume intenso da podridão.

A casa de José Bechara é uma casa cabal: confeccionada em escala real, 1:1, apesar de o ser com esses anódinos painéis de compensados MDF, material sem personalidade, que se extrai do aproveitamento de sobras de outras madeiras, o que por outro lado contribui para subtrair um pouco sua relação com a vida urbana aproximando-a mais de um constructo mental, do esquema sem imaginação reproduzido ad nauseam nos conjuntos habitacionais populares, de resto a mesma fórmula que, associada ao sol, árvore e chaminé, janelas e portas, cultivamos desde crianças nos cadernos sem pauta e nas folhas de papel sulfite. Pois é uma casa como essa, ultrafamiliar, sabidamente o bem mais almejado pelo povo brasileiro, cujo agudo sentimento de insegurança conta com sua aquisição para ser parcialmente aplacado, quem vomita seu mobiliário para fora. Cadeiras, mesas, banquetas, camas, colchões, armários, sofás, poltronas, entre outros objetos cotidianos, de natural tão afáveis e companheiros, rechaçados com veemência, arremessados brutalmente para fora, espremendo-se na estreiteza de portas e janelas, como água confluindo seu fluxo pelo ralo.

Como uma explosão paralítica, jorro estancado numa fração de segundo antes do desastre prosseguir e durante o qual circulamos ao redor contemplando o ocorrido, parte desses móveis já se encontram do lado de fora, já se encostaram ao chão, embora estejam agarrados naqueles que lhes sucedem. E onde estão os moradores dessa casa que José Bechara nos apresenta? Aparentemente não há ninguém. O que nos leva a concluir que foi a própria casa, dotada de vida própria, quem cuspiu, quem resolveu cuspir para fora todo o mobiliário.

Se a casa, toda casa, corresponde a noção mais bem acabada de abrigo, assim como os móveis com que a povoamos estão ali como itens a garantir conforto e estabilidade, o que pensar dessa situação, desse desterro da cena doméstica, pois é evidente que essa casa não nos serve, casa vedada? Não teremos mais o lugar para onde regressarmos. Não mais os pequenos ritos domésticos, as discussões na hora do jantar, a disputa pelo uso do banheiro, os leves esbarrões nos corredores, a convergência de olhares ao redor da tevê, as intermináveis lições de casa na mesa da sala de jantar durante as tardes chuvosas, o cheiro do café, os sermões sempre excessivos, o atracamento horizontal no porto noturno, onde se flutua nos sonhos. Tudo isso e muito mais porque uma casa são as lembranças, os ressentimentos, os prazeres, o vento encanado, a descoberta do corpo e das proibições, o bater abrupto de portas, a luz que se refrata colorida quando atravessa o vitral prosaico com que a janela foi enfeitada. A janela. A janela e a porta, as vias de acesso pelas quais nos chega a cidade e, quando se tem sorte, um pedaço de horizonte, um naco de mar. E as paredes que impedem nossa dispersão, onde escoramos nosso corpo.

De um modo ou outro o percurso poético de José Bechara sempre incluiu, ainda que obliquamente, a violência. Em sentido amplo, é claro, mas certamente essencial, capaz de encampar desde o desencadeamento de uma energia desse grau quanto o movimento discreto, o entrechoque surdo que acontece nas dimensões mais sutis da matéria. Nesse sentido cabe lembrar que se trata de um percurso quase que integralmente realizado através da pintura e que só recentemente, a partir de três anos para cá, abriu-se para fotografia, instalações e, aparentemente, para o que der e vier. E que os vieses sutis transpareceram desde o começo, com o artista optando por uma linguagem abstrata mas que sobrelevava o material, quase sempre lonas usadas de caminhão. Interessa-lhe o tecido rígido que da coloração marrom amarelada com que sai da fábrica vai, por efeito da ação do sol, da chuva e do vento, desbotando-se até chegar no cinza.
Há uma aproximação algo elusiva entre essa maneira de José Bechara conceber a pintura como o resultado da ação fortuita dos elementos ou de um agente qualquer, com as pinturas de Alberto Burri e de Yves Klein. Na famosa tentativa de estreitar o fosso que separa a arte da vida, tema que alcançou um interesse renovado no período pós-segunda guerra, Burri, numa abordagem que em parte deve ser creditada a sua experiência como prisioneiro, fez uso de retalhos andrajosos de tecidos ordinários como a juta, pedaços rasgados e perfurados, trocando os princípios pictóricos tradicionais em favor da ênfase no caráter rudimentar dos materiais empregados. Quanto a Klein, basta lembrar sua tela deixada ao relento no porta-malas do carro para que a chuva as pintasse ou a tela azul composta de desenhos circulares, resultado da oscilação dos pincéis meticulosamente fixados num varal colocado sobre ela.

Mas o procedimento de José Bechara distingue-se dos dois artistas pela sobreposição de outras operações. Em primeiro lugar considere-se que em relação ao suporte ele só compra aos caminhoneiros, preferencialmente, lonas bem gastas, que já vão longe em sua vida útil. O comércio entre ambos acontece com as lonas estendidas no chão e o artista avaliando as marcas deixadas pelos elementos e pelas ações exercidas ao longo da árdua rotina do material. O artista analisa as perfurações, arranhaduras, escoriações, enfim, o desgaste de um material impiedosamente exposto ao sol, vento e chuva, que se contrai no frio, dilatando-se no calor, que trabalha atravessado por cordas que lhe comprimi de fora para dentro lacerando-o até o ponto de rasgá-lo, feixes de força obrigando-o a se moldar ao corpo dos volumes compactos e regulares que embalam as mercadorias transportadas. Volumes que forçam a lona de todos os lados, quando das freadas, acelerações, subidas, decidas e curvas, oscilando para lá e para cá, fazendo-a casca elástica e resistente, como uma placenta que, ao final de cada viagem, será esvaziada e mais uma vez preenchida.

Encerrada essa etapa o passo seguinte consiste em levar as lonas para dentro do espaço de trabalho. Com suas raízes fincadas na história da arte e freqüentemente identificadas com espaços semelhantes a câmaras íntimas e resguardadas, o termo ateliê resulta inadequado para designar um espaço que às vezes, em razão de obras de grandes proporções, pode assumir dimensões industriais, além de ser mais compatível para suportar o impacto de uma química relativamente insalubre: a precipitação controlada de um processo de oxidação que o artista executa sobre ela. Seu método de trabalho compreende arranjar camadas de diferentes espessuras de palha de aço carbono, dessas empregadas domesticamente na areação de panelas ou na raspagem da cera de assoalhos de madeira, sobre recortes quadrangulares de lona. Posteriormente, sem tinta nem pincel, o artista passa a molhar as camadas apressando a oxidação que em função do calor e umidade do ambiente ocorreria de qualquer maneira. A violência do composto água/ar é tão grande que praticamente pode-se assistir ao seu progressivo ataque à palha de aço, macerando-a, dissolvendo-a, transformando-a, por sua vez, uma agente abrasiva cujo efeito terminará por ferir a lona sobre a qual foi colocada. O emaranhado capilar de ferro irá se metamorfoseando em blocos pétreos marrom escuro, fibrosos e quebradiços; irá ainda se desfazer em pó, em mancha, em nódoa que destruirá irreversivelmente a tessitura da lona, ao menos em seus extratos superficiais. À memória que a lona carregava de sua serventia protetora agora se soma a memória do material pulverizado, que um dia jazia abrigado abaixo dentro do chão.
Mas o método pictórico de José Bechara não se esgota aí. Alargando o raio de controle sobre o processo, ele fixa, antes de proceder a oxidação, longas tiras de fita adesiva pela superfície de lona, criando faixas de espessura variável, paralelas ou ortogonais entre si, que demarcam planos distintos da tela. Trata-se de uma geometria feita a partir de gestos metódicos, medidas exatas, ritmo compassado, nada semelhante a naturalidade do processo de oxidação. Retirando as faixas após a finalização da “queima”, queima que o artista pode querer mais intensa nesse ou naquele plano, nessa ou naquela faixa, as telas, combinadas em dípticos e trípticos, apresentam zonas – planos e faixas – nitidamente distintas, que contrastam com os despojos do processo físico-químico. Alguns deles são carregadas de uma tonalidade de marrom muito vivo, como zona ou feixe energético plenamente ativo.

O que pode o artista contra o tempo da natureza, a ação dos elementos, o esforço e a persistência da lona contra ambos? A pintura, fala-nos o artista, ao contrário dos que acreditam em refúgios, não se dá sobre um campo branco e imaculado como o tecido próprio para a prática da pintura, encontrável nas casas comerciais de produtos artísticos. Se a pintura é o resultado de uma ação sobre uma superfície, então a lona dos caminhoneiros, como o “Céu de Paris”, obra clássica de Marcel Duchamp, por si só, também o é. Mas, também como o “Céu de Paris”, ou os sacos de juta de Burri ou ainda o azul profundo de Klein, a lona de José Bechara só é arte porque ele assim decidiu. Como maneira de apontar a convergência do seu gesto com a ação da natureza, o artista intensifica, escolhendo a região e a intensidade, um princípio ativo igualmente fundado na destruição, na inevitável erosão das coisas. Assim, ao invés de uma ação construtiva o artista propõe outra que é seu par diametralmente oposto. Ao invés do recobrimento ou da reconstituição do material, ele admite seu natural encaminhamento rumo a morte, acompanhando-o nesse processo. Mas cabe lembrar que sua ação não se esgota aí. Se é verdade que tudo caminha para o silêncio, como tudo que existe se sujeita à lei da gravidade; se é fato que a pintura de José Bechara desprende um ar trágico, resta ainda a positividade, a coragem expressa na tentativa de organizar, ainda que a partir de gestos pouco eloqüentes mas, ainda, assim, portadores de um sentido; uma estrutura tão regular e monótona como um campo a ser cultivado e, possivelmente, tão fértil quanto ele.
Ao mesmo em que ele agride o material, escolhe as áreas que pretende proteger, estirando sobre elas faixas de proteção, faixas que, uma vez retiradas, deixarão que se veja as velhas cicatrizes. Isolados momentaneamente que foram, esses planos e faixas agüentarão um pouco mais, estabelecerão como que um contraponto sonoro com os setores mais corroídos, como um som que se mantêm vivo a partir do som que o sucede.

Antes ainda de avançar para além dos limites da pintura de José Bechara para tentar rastrear os motivos que o levaram ao estágio atual, em que ele pratica outras formas expressivas, deve-se, a meu ver, levar em conta que, para ele, a possibilidade de se prosseguir realizando pinturas passa necessariamente pelo reconhecimento de que ela acontece em toda parte, em tudo o que há e o tempo todo. Muito antes como também muito depois dele interceptar uma fração de uma coisa qualquer para levá-lo para dentro de seu espaço de trabalho e enfrentá-lo. Para Bechara a pintura acontece na superfície das coisas, nos rostos, nas pedras, nos edifícios, no céu, no detalhe entrevisto na fruta antes dela ser mordida como também depois dela ser mordida, na pele dos animais, como o gado que cresce solto no campo, as voltas com os bichos e as cercas que lhes criam cicatrizes, até chegar a hora de rumar para o matadouro e serem abatidos com um estampido preciso e seco desferido na parte posterior da cabeça.

Foi isso o que nos indicou a sala do artista na 25ª. Bienal de São Paulo, ocorrida em 2002, quando, a meu convite, integrou a representação brasileira, então sob minha responsabilidade, e cuja parede do fundo era recoberta por uma grande pintura cinza, a rigor um políptico retangular formado por 20 telas cinzas. Recobertas com manchas escuras que de longe pareciam matéria protuberante, vistas de perto as telas revelavam-se peles cruas de boi, pelos raspados, com as marcas indeléveis de sua existência: cicatrizes produzidas por bernes, arames farpados, ferros em brasa, além dos sacos escrotais enrugados e pensos; o casulo/fonte de vida do animal, agora ressequido e inutilizado. Pintura ou o quê?
Ao mesmo tempo em que lançava essa indagação, a sala, a maneira de súmula de sua trajetória até ali, reunia desde quatro obras em grande escala realizadas com o processo de oxidação combinados com a geometria das faixas, a um grande acolchoado, um edredon totalmente enferrujado e cujas típicas protuberâncias regulares prolongavam-se pela parede sob a forma de um tramado exato de linhas brancas. O contraste entre as duas partes da peça, seu setor corroído com o desenho imaculado e preciso que se estendia sobre a parede branca, fazia dela uma zona de conflito, irreconciliável, como se as escaras e crostas, índices claros do sentido de tempo e de destruição, avisasse as coisas do espírito de sua ação inevitável e fatal.

Ainda que não se possa afirmar com segurança o que levou José Bechara a trabalhar nessa escala paroxística da violência, até porque os motivos que levam um artista a fazer o que faz quase nunca passam por critérios objetivos, a visita aos matadouros quando da preparação da obra apresentada na Bienal de São Paulo, obra que hoje pertence ao acervo da Culturgest de Lisboa, parece ter sido uma experiência crucial. Na ocasião, em depoimento feito a mim, o artista comentava a indiferença dos profissionais dos matadouros mesmo percebendo prenhas as fêmeas recém abatidas.
É possível então reconhecer uma homologia entre essa crueldade incompassiva e a passividade bucólica dos agradáveis chalés de madeira da vila de Faxinal da Artes, assentamento serrano no interior do Paraná, palco de um programa de residência que em maio de 2002 propiciou a convivência, durante quinze dias, entre cem artistas de todo o país. Quinze dias passados em meio aos chalés de madeira multicoloridos, encarapitados em filas regulares ao longo de um suave declive. Jardim botânico ao lado, lagos, muito verde, frio, comida boa e muito apetite. Um cenário talvez demasiado calmo, inquietantemente tranqüilo para alguém, como José Bechara que, não bastasse sua natureza algo energética, sua extração ultra-urbana, vinha da ansiedade provocada pela necessidade de preparar sua sala da Bienal. Pois foi ali, como nos conta uma seqüência fotográfica feita in loco, que o artista apareceu com essa idéia de que até mesmo aquele pouco que temos para a nossa tranqüilidade, a concha, o reduto final, o lar, mesmo isso, é um corpo que sofre de espasmos, acometido por pulsões perturbadoras, cuja extensão dos efeitos não conseguimos aferir ao certo.

 

 

Agnaldo Farias, Professor Doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Crítico e Curador Independente. É curador do Instituto Tomie Ohtake de São Paulo, foi curador da Representação Brasileira da 25ª. Bienal Internacional de São Paulo, foi curador geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1998 / 2000) e curador de Exposições Temporárias do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (1990 / 1992).