Para nadar é preciso ver o mar

Antonio Pinto Ribeiro
Lisboa, Portugal, 2019
Em Território Oscilante, publicada pela editora Barléu.

O dilema da herança começa assim: Que fazer com todos esses bens que o meu pai me deixou? Que fazer com esse legado? Pergunta o filho ao receber a lista dos bens no dia da morte do pai. Este poderia ser o início de uma parábola ou de um conto árabe. Mas podem ter sido também essas as perguntas do jovem José Bechara no dia em que recebeu a notícia do falecimento de seu pai, um comerciante libanês há anos instalado no Rio de Janeiro.

Desfazer-se dos bens herdados seria a última coisa a fazer, constituiria uma traição ao espírito de uma família de antepassados árabes. Assim, Bechara terá optado por homenagear o seu pai continuando o negócio herdado, mas à sua maneira.

Depois de tomada essa opção, o dilema, contudo, não o abandonaria. Que fazer agora com a herança, com o legado, já não dos bens de seu pai, mas de outros, como o da história de arte, que, muito jovem, vai enfrentar, inscrevendo história de arte que lhe foi deixado nos cursos no Parque Lage, no Rio de Janeiro, nas aulas do professor Charles Watson e na aprendizagem com outros artistas? Que fazer com esse bem imaterial, enigmático, sedutor que lhe chega aos vinte anos de idade? Terá de uma outra vez, à sua maneira, lidar com ele, aceitando o que será conforme ao seu trabalho e rejeitando o que não lhe traz a hipótese de uma mais-valia simbólica. A criação artística é sempre a criação contra o que é legado, contra os antepassados, mesmo que ciclicamente a eles se volte, mesmo que à sua maneira recolha conhecimento que lhe permitirá acrescentar à história de arte, justificar o seu trabalho e até a sua vida de artista. E por isso escreverá, poucos anos depois, na introdução a um dos seus primeiros livros: “Todos os dias faço a mesma coisa: procuro coisas que não existem”.1 O artista José Bechara está muito consciente desse imperativo, de que antes desi muitos outros tiveram o mesmo dilema que resolveram através do confronto umas vezes, e outras retrabalhando essas memórias. Nessa altura, o artista tem “atrás de si” a pintura europeia novecentista e a pintura minimal americana, os desenhos de parede de Sol LeWitt, as obras de Cildo Meireles, as esculturas de Waltercio Caldas, a pintura suja de Anselm Kiefer, a fantasmagoria multicolor e os parangolés populares de Hélio Oiticica. Zé Bechara está defronte a arte e pode pensar o que Maria Filomena Molder escreve a esse propósito:  “Qualquer obra de arte é a aplicação de um esforço de interromper uma corrente, de fazer saltar, estilhaçar, uma ligação, um vínculo, em vista de os exprimir. Qualquer obra de arte é também uma resistência à tentação de ser arrastado, de se deixar adormecer na neve, uma resistência ao prazer de continuar a ouvir os harmónicos perfeitos, para os obrigar a ressoar.” (Molder, 2016:25)2

O DESENHO É O MEU DIÁRIO 3

A recordação mais antiga que tenho da presença física de José Bechara é elesentado nos degraus da galeria da Culturgest olhando a parede imensa onde tinha acabado de colocar dezenas de folhas de papel vegetal lavadas em água de ferro, que levemente esvoaçavam por efeito das correntes de ar que atravessavam a galeria.4 Essa posição do artista concentrado na montagem da exposição define uma atitude que para muitos pode ser de indecisão, mas é tão só o momento de confirmação de que a decisão final tinha sido tomada; o artista repousava no final de um outro combate: a exposição de uma obra no território da museografia. Essa obra intitulada Cadernos rápidos é composta por uma série de oitenta papéis que tomam esse nome por terem sido produzidos num curto espaço de tempo sem interrupções. Tinham sido mostrados pela primeira vez em 1999 no Paço Imperial do Rio de Janeiro. Dispostos lado a lado ocupando uma única parede a toda a escala, formavam um painel que oscilava com o deslocamento do ar gerado no interior da galeria. Os papéis tinham passado por um processo de oxidação em vários tons de ferrugem. Não se poderia dizer que eram esculturas, mas já não se tratava dos primeiros desenhos à vista apresentados na série O outro (1992-2000).5 Nesses papéis “rápidos” há, contudo, um conjunto de traços que constituem uma matriz dos anos seguintes na sua obra: o artista é um desenhador, desenha e pinta em permanência ou, na feliz expressão de Luiz Camillo Osorio, “…a realização da pintura, seu sacerdócio cotidiano…”,6 o artista está em permanente estado de criação, que confirma quando diz: “Eu não sou homem de projeto, sou artista do fazer”.7 José Bechara tanto considera o acidente e o seu resultado incontrolável (as cores aleatórias resultantes da oxidação dos papéis, as marcas imprevistas das lonas) como a ordem imposta pela geometria e controle da escala. É um conflito no modo de agir em cada obra e latente, ou manifesta, sempre lá estará a turbulência que o tem acompanhado na sua produção. De um modo muito particular e novamente à sua maneira, ele poderia responder que também a sua arte provém das mesmas experiências de que fala o verso de Caetano Veloso: “A vida é amiga da arte”.8

O pós-guerra trouxe para a arte moderna, e depois para a arte contemporânea, o lixo e os restos (Tàpies), os materiais pobres e artesanais (Beuys), o informe (Twombly ou Fontana), o abjeto (Piero Manzoni), a performance com autoflagelação (Marina Abramovic, Ana Mendieta). Eram modos de agir que propunham um corte com a tradição da representação e a passagem direta a um realismo concreto e não mimético. Tratava-se do The Return of the Real na justa expressão de Hal Foster: “Se alguns modernistas tardios queriam transcender a figura referencial e alguns primeiros pós-modernistas queriam deleitar-se na pura imagem, alguns pós-modernistas tardios querem possuir a coisa real”.9

A coisa real foi para Bechara o encontro acidental de uma lona suja no chão de um posto de gasolina. A coisa real mostrava-lhe a passagem do tempo no desgaste da lona, as marcas da sua utilização, os orifícios do seu desgaste, os traços contaminados dos vários produtos que a lona tinha coberto e protegido. A pintura já não era uma idealização formal, ab initio, nem sequer o resultado de impulsos e atos de tinta sobre a tela como Jackson Pollock o fazia, apesar de, em algum momento, haver uma dimensão de fisicalidade e de combate comum nesses primeiros anos entre Pollock e Bechara – era a apropriação de uma coisificação do tempo nesse processo de ready-made em terras do Brasil.

É bastante conhecido o processo que conduziu Bechara à criação de A casa. O artista estava numa residência artística no Programa Faxinal das Artes de maio de 2002, no interior do Paraná, e numa situação de incapacidade para pintar. A janela da sua residência fê-lo descobrir a moldura natural que enquadrava a natureza do lado de fora. Permitiu-se então, por um processo de acumulação de objetos caseiros – mesas, cadeiras, colchões – passar à escultura. A passagem das lonas à escultura da casa e desta à peça Ok, ok, let’s talk (2006) decorre da mesma obsessão com o controlo do tempo. Como suspender a passagem do tempo? Nas lonas estava fixado no palimpsesto que é a acumulação de traços, de memórias inscritas sulcadas na lona. Em A casa é esse momento em que a casa vomita pelas janelas os móveis – cada um deles com um tempo coisificado – a que se acrescenta a congelação do movimento, porque o vómito da casa está suspenso. Como se na projeção de um filme um fotograma se imobilizasse e o filme já não tivesse futuro.

A casa e Ok, ok, let’s talk constituem um díptico fulcral na obra de Zé Bechara. Ambas são peças em permanente mutação – de cada uma das obras o artista fez várias instalações ao longo de dez anos. São peças de exaltação da escultura, obras em que quer os materiais, quer a relação da construção do artista com as mesmas são de uma enorme fisicalidade. O artista que já vinha anunciando combates desde que saiu do Parque Lage mostra-se sem qualquer pudor o escultor dominando os materiais, fraturando-os, cortando-os, deslocando-os para lhes compor e recompor a forma até chegar ao estado artístico. E a essa modelação atlética Zé Bechara, que não é um artista que se reclame de interventivo, social ou politicamente, trabalha sobre duas unidades básicas da sociedade: a casa lugar de abrigo, de família mais ou menos formal, território de laços, e Ok, ok, let’s talk, na verdade uma obra sobre a conversa, a democracia, em que sobre um chão se constroem frases ou se interrompem conversas pelas cadeiras que interceptam o contínuo do soalho ou as mesas que quase se tocam, mas são interrompidas por cadeiras que rompem a continuidade do
plano. Claro que esse díptico é explicitamente turbulento, mas essa é a maneirada criação do artista mesmo quando assenta os fundamentos de um futuro.

Esse díptico deu início a um período de intensa produção do artista sempre diluindo as fronteiras entre os géneros, coisa de menor importância na arte, fazendo pintura, desenho, esculturas de várias escalas, até que a exposição de 2004 no Instituto Tomie Ohtake suspende por algum tempo o trabalho sobre a casa e se dedica à abstração escultórica, procurando a materialização da cor. Estou em crer que procurava chegar mais próximo da beleza suspensa e em permanência e daqui se entende todo um percurso: “Reportório para aproximação de suspensos”, Tomie Ohtake (2013), “Jaguares”, Paço Imperial (2015), “Voadoras”, Galeria Marília Razuk (2016), “Intervalo das coisas”, Instituto Lina Bo e PM Bardi e “Zumbidos”, Galeria Lurixs (2017), “Fluxo bruto”, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2018). O artista procura novos materiais, novas fórmulas, é inquieto nessa busca experimentando a parede preexistente da galeria ou do museu, o cabo de aço, o mármore, a madeira oxidada, a fotografia e o vidro ou de um modo mais preciso a transparência. O artista sabe que antes de si muitos outros passaram vidas inteiras procurando isolar a cor: de Vermeer a Mondrian, de Malevich a Mangold, de Monet a Rothko e muitos outros. E o artista conhece práticas antigas de tentativa de isolamento da cor seja nas missangas ou nas pinturas sobre vidro dos antigos pintores da costa ocidental de África. Mas José Bechara, vindo de uma tradição ocidental, utiliza os processos que melhor domina: os vidros são pintura no trânsito para a escultura e desta novamente para a pintura e, quando suspenso na sua transparência, o vidro sustenta a cor na imensidão do ar; é escultura, pois, no rigor geométrico que lhe serviu de técnica, mas é uma geometria que lhe permite tranquilizar a turbulência dos materiais. Nada tem de natural nem de adquirido essa regra da perfeição que surge das cores esculpidas de onde surgirá a beleza, porque ela vem de um trabalho criativo em permanência, diário e sem tréguas, ou como diz o artista: para nadar é preciso vencer o mar.10


Antonio Pinto Ribeiro
Lisboa, Verão, 2018

1 2010. Bechara, José. Como piscada de vaga lume. Réptil editora Lda. RJ

2 2016. Molder. Maria Filomena. Rebuçados venezianos. RelógioD’Água. Lisboa

3 Trata-se de uma afirmação de José Bechara no contexto de uma entrevista que lhe fez Glória Ferreira publicada in 2008. Bechara.José. Blefuscu. Dardo. Santiago de Compostela.pp. 156

4 Trata-se da exposição Um oceano inteiro para nadar (artistasportugueses e brasileiros ) com curadoria de Paulo Reis e Ruth Rosengarten, na Culturgest,Lisboa 2000.

5 Cf desenhos in 2010. Bechara, José. Como piscada de vagalume.Réptil editora Lda. RJ

6 2016. Osório. Luís Camilo. Olhar à margem, SESI-SP editora, SãoPaulo.p.253

7 Em conversa com o autor a 26.07.2018

8 Trata-se de um verso da canção Força estranha de Caetano Veloso
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A ida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão
Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

9 FOSTER, Hal, The Return of The Real, in Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acesso em 06/08/2018, http://www6.ufrgs.br/ artereflexoes/site/wp-content/uploads/2011/02/oretorno-do-real.pdf, p.185.

10 Em conversa com o autor a 26.07.2018