Pintura contaminada pela poeira do mundo

Felipe Scovino

Rio de Janeiro, Brasil, 2014
No catálogo da exposição “José Bechara”, 2014 – Galeria Simões de Assis, Curitiba, PR, Brasil.

No Brasil, o legado das tendências construtivas ao longo da segunda metade do século XX foi uma constante com algumas variáveis. A geração que se estabeleceu logo após o fim do neoconcretismo teve influências tanto da Pop quanto da arte conceitual ainda que tenha criado uma linguagem muito própria e inventiva, sem abdicar em maior ou menor grau do abstracionismo geométrico, como foram os casos, por exemplo, de Antonio Dias, Carlos Vergara, Cildo Meireles, José Resende, Rubens Gerchman ou Roberto Magalhães. Outras pesquisas estéticas tais como as de Mira Schendel, Paulo Roberto Leal e Raymundo Colares tiveram uma aproximação maior com as tendências construtivas e sem dúvida algo arquitetaram uma condição nova e abrangente para essa pesquisa. As obras desses três artistas, por exemplo, criaram uma superfície pictórica orgânica e fluída.

Um novo entendimento sobre como o construtivismo tendia cada vez mais a um discurso sobre o sensorial. José Bechara e uma determinada parcela da geração em que está incluído – como Carlos Bevilacqua, (as primeiras obras de) Ernesto Neto e Raul Mourão – estendem essa vertente ao trabalharem de uma forma harmônica e orgânica com o metal – seja o aço, o ferro ou o cobre -como material para esculturas ou especialmente no caso de Bechara como matéria pictórica. Um primeiro ponto que sempre me chamou a atenção na sua obra foi o fato de substituir a tela branca por uma superfície suja, poeirenta, impregnada de história, que são as lonas usadas de caminhões. Esse é o primeiro passo para entendermos o aspecto orgânico – expressão clichê, mas que aqui perde efetivamente a sua impotência para ganhar outra validade – de sua obra e a forma como cria mais uma variável para esse acento geométrico na arte brasileira. O artista sobrepõe camadas de tempo ao fazer uso de processos de oxidação daquele material. Bechara incorpora a morosidade da oxidação como condição para a aparição do aleatório. As modificações que ocorrem – marcas, texturas e manchas – tecem uma sobreposição de volumes, cor e textura. Em outros momentos, ele divide a lona entre uma parte marcada por esse processo de oxidação e a outra pelas marcas que foram adquiridas por aquele material ao longo do seu uso na estrada. São linhas construídas ao acaso, signos de memória, que passam em um gesto poético a serem incorporados como pintura.

Ademais, o artista faz uso da grade, elemento simbólico da gênese da pintura construtiva (vide os construtivistas russos e Mondrian) e que no pós-guerra ganha distintas leituras (de Robert Ryman a Agnes Martin, passando por Gerhard Richter e Lygia Pape), como uma possibilidade real e precisa de criar uma perspectiva ilusória. Segundo Dan Cameron, “a grade lentamente se desenvolveu de um dispositivo usado para ajudar a criar uma ilusão espacial para um sistema que se impôs sobre o espaço propriamente dito.” A grade declarou a modernidade da arte ao ajudá-la a conquistar sua autonomia e “em parte” a dar as costas à natureza. Para Sennet, “a convicção de que as pessoas podem expandir os espaços infinitamente – através de um traçado em grade – é o primeiro passo, geograficamente, de neutralizar o valor de qualquer espaço específico.” Em Bechara a grade aparece como um ato transformador. Primeiro porque as linhas que a delimitam são tortas, sujas e erradas assim como toda a superfície da lona. Há uma outra ordem para essa composição geométrica, minimalista e precisa. As suas obras são sobrevoadas por uma atmosfera ruidosa, poluída, violenta, urbana, na qual caos e ordem estão misturados. Dionísio e Apolo se alternam naquela superfície que exatamente por isso é extremamente real e viva. De alguma forma, a velocidade e a dinâmica que fizeram parte da história daquelas lonas são transferidas para as composições criadas pelo artista. E ainda, a grade em determinados momentos parece avançar sobre o espectador, e em outros recua como se o que interessasse fosse tornar visível as figuras que são construídas aleatoriamente pelo processo de oxidação e pelas suas próprias linhas, tortas e precárias. É esse grito de defeito e de que algo deu errado que faz as obras de Bechara serem demasiadamente humanas. Entre aproveitar o que já vem dado pela lona – riscos e manchas -, o artista cria um novo repertório de traços e linhas que magistralmente equilibra passado (história e memória) e presente (a ressignificação da pintura, e por que não do desenho?, e da própria ideia de gestualidade).

Em sua série mais recente, Bechara intensifica a aparição da grade, pois a sua composição torna-se mais fechada e apresenta sucessivas camadas que ao se sobreporem “apagam” a “pele” da lona. Todavia o plano torna-se ainda mais dramático – como se a um olhar leigo fosse possível criar drama apenas e tão somente pelo cruzamento de linhas verticais e horizontais, e é aqui que a deflagração poética transforma a banalidade e o ordinário em um acontecimento mágico e encantador – com a incapacidade em denotarmos o que é figura ou fundo pois a perspectiva transforma-se amplamente em uma experiência ilusória. Porém, a oxidação continua presente e cria zonas gráficas e de interferência cromática que continuam transformando essas obras em uma espécie de canteiro de obras. É um processo sucessivo de decantamento (ao aplicar a emulsão sobre a lona, a oxidação derivada desse processo precisa de um repouso para a sua ação) e encantamento. Bechara é um artista incansável pois está lá gravado na lona, a sua força, participação, investigação de materiais e técnicas; como uma experiência biológica, assistimos ao jogo de forças e presença que a emulsão de cobre ou aço, o uso da palha de aço e a corrosão derivada desse processo realizam sobre a superfície da lona.

Suas esculturas não constituem uma outra fase de produção em relação às pinturas, pois são diálogos pertinentes e imbricados. Sua mais recente série de obras denominada Enxame ou estudos para uma aproximação de suspensos (2013-14) torna clara essa aproximação. Ela possui um papel intermediário nessa aproximação entre a bidimensionalidade e o ar. São caixas de madeira cujo interior é formado pela sobreposição, com pequenos intervalos, de placas de vidro. Sobre as placas há a aplicação de tinta spray de distintas cores que, como um pincel, imprime um preciso e livre jogo de formas geométricas. No fundo de algumas dessas caixas, placas de madeira cortadas, que acentuam não só o legado construtivo na obra de Bechara mas também a pesquisa sobre cor e planaridade que tanto interessa à sua produção. Na construção de uma relação óptica e ilusória, essas obras parecem lançar ao espaço as linhas e campos de cor, fazendo que com que elas bailem por entre os vidros.

É essa constituição de um desenho no espaço que cria o diálogo entre suas pinturas e esculturas. Especialmente na série Esculturas gráficas, a tridimensionalidade pertence mais ao ar do que à terra. E essa imagem advém principalmente pelo fato de Bechara equilibrar cheio e vazio, o dentro e o fora. Seus volumes preenchidos de ar nos fazem ver aquelas formas como estruturas gráficas suspensas do papel e tendo o espaço como seu habitat. Mesmo sendo esculturas, ficam na fronteira entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade. E mais um fator que nos ajuda a compreender essa fronteira borrada é o fato de como o artista continua a investigar a cor. Estes monocromos tridimensionais elevam a cor que estava no plano do papel ou da lona para a superfície. Criam formas gráficas suspensas e que se equilibram minimamente, transmitindo uma sensação de precariedade e instabilidade, entre o balanço de preenchidos de vazio e outro com grande carga cromática. Não me parecem que ocupam o espaço de uma forma vigorosa e pesada mas pousam sobre ele. Há uma sensação de que o peso foi retirado daquelas estruturas e elas simplesmente e decisivamente ganharam leveza e um ritmo que as leva a ocuparem e se infiltrarem naquela área de uma maneira cadenciada. Por outro lado, a série Open House traz uma velocidade caótica e desorganizada. É importante relatar que nesse percurso de experimentação acerca do espaço, a casa é um arquétipo frequente na obra do artista. Entretanto, é uma casa que procura ser esvaziada, como presenciamos na série em questão, pois ao mesmo tempo em que parece desejar ser ocupada pelo vazio, expulsa o que contém ou que estava sendo mantido em âmbito privado. As duas séries de esculturas situam-se em uma zona de conflito, porque nessa imagem dionisíaca e hostil de uma escultura que se faz no turbilhão do caos, o artista quer demonstrar que “o vazio tem solidez, é uma matéria.” É um vazio que se coloca como personagem de um enredo trágico.