Glória Ferreira
Entrevista, Rio de Janeiro, Brasil 2007
Em Blefuscu, publicado pela editora Dardo – DS, Espanha, 2008
GF: A casa, realizada no Faxinal das Artes, em 2002, e os seus diferentes desdobramentos se instalam, em vários sentidos, na longa tradição da relação da arte com a arquitetura, embora dialogue com questões escultóricas e pictóricas. Bruno Zevi, em seu clássico livro Aprender a ver a arquitetura, assinala a dimensão como um elemento de diferenciação entre a arquitetura, a escultura e a pintura: a pintura pode sugerir diferentes dimensões – por exemplo, a profundidade por meio da representação gráfica de espaços arquitetônicos, mas ela, apenas, sugere; a escultura, caracterizada pelas três dimensões, deixa o homem de fora – claro, com as atuais transformações da escultura, nem sei mais se se pode chamar de escultura, o homem foi introduzido nesse espaço; e, na arquitetura, chamada por ele de “escultura esvaziada”, o homem penetra no interior, no qual vive etc. No seu trabalho, que mescla elementos escultóricos, pictóricos e arquitetônicos, o espaço interno, esse vazio, cujas dimensões não podem ser, digamos, definidas, mas apenas vivenciadas, é o que está oculto, que é destituído. Torna-se virtual. Pode-se pensar no vazio daquela casa, mas é ele invisível.
JB: Sei que ele existe porque guarda um determinado evento naquele interior, mas não tenho acesso a ele; não sei o que é. É um abismo.
GF: Ou seja, não se sabe se na sua casa tem cozinha, banheiro, quarto… tem até uma música do Vinicius muito engraçada sobre uma casa que ninguém penetra porque não tem chão.
JB: É uma casa fantasma. A casa, o ninho, é o lugar que guarda o indivíduo, que o protege, que dá a ele a chance de se proteger… Se proteger do quê? Do entorno, das ameaças externas… mas, na verdade, A casa fala de ameaças internas e não externas… No processo do trabalho, pensava nessa relação com a arquitetura, sim. De fato, sempre pensei, durante a construção do trabalho e da elaboração das idéias, nessa relação com a arquitetura. Porém, mais pelos pontos de conflito do que de aproximação. Ou seja, não pelo lado macio, não para encostar nas questões da arquitetura, mas uma relação pelo embate, pelo conflito que passa pelo sentido de desalojar o homem, produzir desamparo, produzir um não-lugar…
GF: Esvaziar o vazio…
JB: … dar solidez ao vazio. O vazio, de modo geral, é o que se pode preencher. No Faxinal, havia sido convidado para pintar, mas não conseguia pintar de jeito nenhum (o que hoje eu até entendo…), e o trabalho só começou quando olhei por uma janela vazia e pensei no elemento geométrico que era aquela janela vazia e em preencher esse vazio. Na verdade, com o que lido hoje no projeto A casa, e nessa série nova das esculturas em escala reduzida, é com o sólido vazio. Quer dizer, o vazio tem solidez, é uma matéria.
GF: Seu trabalho me faz lembrar o romance de Ítalo Calvino, traduzido para o português como O barão nas árvores, que se passa no século 18: o filho de um barão se revolta contra seus pais e sobe nas árvores, para de lá nunca mais descer, porque “aquele que pretende observar bem a terra deve manter a necessária distância”. Ou seja, olhar esse mundo da casa, do habitat, à distância. Seu trabalho, de certa maneira, explicita essa ameaça do interno, também o coloca à distância, exige que essa vivência seja pensada.
JB: Esse barão – que eu não li, mas vou ler – dá uma solução maravilhosa: ele não precisou de tanto quanto eu precisei para chamar a atenção para a fragilidade dessa coisa tão sólida quanto a noção familiar da moradia nos faz crer que a casa seja, mas é, de fato, uma invenção humana que tem como função guardar tudo o que se é e o que se tem.
GF: É isso que fica em suspensão no seu trabalho, evidenciando também a crescente falência do espaço público. Até mesmo o suposto espaço público da internet é interno na casa…
JB: Essa casa, essa coisa inventada pelo homem não serve, e essa é a situação do trabalho. Não tem essa história da sereia que canta uma canção linda, mas que, na verdade, te leva para o abismo? A casa faz isso. Ao contrário do que se supõe, não é algo que conforte: é muito hostil. Não penso apenas na hostilidade ao colocar os móveis para fora e oferecer um vazio. Penso na dimensão trágica que esse vazio pode ter, que é a do pesadelo, da perturbação. Não é só olhar para uma casa e dizer: não serve para mim, porque me hostiliza. É mais do que isso: experimentar a sensação de desamparo. Expulsar do interior para um espaço que é público.
GF: Na problemática do habitat humano, o seu trabalho questiona também o espaço da arte na arquitetura. Da arte feita em comunhão com a arquitetura, e o momento posterior em que a pintura e a escultura ganham a sua independência, com o quadro de cavalete que rompe essa comunhão, mas que, finalmente, volta para as casas, para as paredes, embora não mais integrados. Na arte contemporânea, essa relação se dá dos mais diferentes modos, criando, contudo, situações em que elementos arquitetônicos fazem parte do trabalho. No Brasil, há um descompasso entre o auge da arquitetura moderna (com a construção de Brasília) e a arte relacionada à tradição construtiva, como o neoconcretismo, que são, portanto, historicamente contemporâneos. Em Brasília, a relação se dá com Bruno Giorgio, enfim com os artistas modernos. Por outro lado, apesar da referência ao construtivismo, os artistas neoconcretos desenvolvem uma outra relação com a arquitetura, que não é mais a da dissolução da arte nesse espaço. Hélio Oiticica, por exemplo, desenvolve a idéia de penetrável, em particular com o projeto Cães de caça, de 62, que é uma espécie de construção arquitetônica, mas como construção artística que supõe a vivência do vazio. Enfim, são muitas as experiências ligadas à arquitetura como o transporte de plantas de galerias por Dennis Oppenheim, A casa é o corpo de Lygia Clark, Os cantos de Cildo Meireles etc. Ou ainda, Joel Schapiro, com aquelas casas mínimas em grandes espaços… Leonardo Vilela, um jovem artista brasileiro, vem desenvolvendo um trabalho muito interessante, com as plantas dos grandes apartamentos anunciados nos sinais de trânsito do Rio… Trabalho que, embora eu ainda não conheça muito, toca, a meu ver, na instância da própria situação do homem no mundo e a própria situação da arte – onde ela se localiza? Das suas “casas” não saem quadros…
JB: São casas sem quadros…
GF: E onde eles ficariam, onde ficariam as esculturas, as peças, os objetos de arte?
JB: Em um outro trabalho… Não saem quadros dessa casa porque o projeto inicial, desde o Faxinal, está calçado, se utiliza de dois canais, de dois vetores: um formal e um simbólico. O primeiro impulso do trabalho foi em relação à possibilidade de construir, de produzir, uma escultura geométrica a partir de elementos à minha mão, de uso doméstico que constituíam a casa em que morava, e que fossem elementos geométricos, como uma mesa é uma combinação de verticais e horizontais, e por aí vai. Cheguei a colocar quadros… e desisti. A mesa, por exemplo, já é suficientemente impregnada de memória, de presença humana. Não preciso do cinzeiro, do porta-retratos, da garrafa de uísque. A mesa é. O sofá é. A cadeira é. Já estão assim. Colocando outros objetos, não estaria reforçando e sim me afastando do impulso original. O trabalho perderia em sua economia. Isso adicionaria uma outra discussão.
GF: Sem dúvida… é uma provocação a respeito do vazio do lugar da arte… Tudo é colocado em suspensão nesse habitat transfigurado… Você usa móveis de uma simplicidade total, quase arquétipos de móvel, colocando também em suspensão a memória da sua época de origem. No Paço, no entanto, os móveis eram antigos e mantinham uma relação com a arquitetura…
JB: … porque tive a ajuda de um amigo, Plínio Fróes, que tem um antiquário, o Rio Scenarium. Sinceramente, foi uma coincidência. Quando o caminhão de móveis que Plínio me emprestou chegou, pensei nessa relação temporal com o Paço, mas não foi intencional. O trabalho ganhou, eu acho. Como disse, se colocasse uma estante com livros ou 15 quadros saindo pela janela, traria uma leitura para além do que era essencialmente o trabalho, que era expulsar elementos que pertencem à paisagem humana, doméstica, mas ainda lidar com o mais essencial em termos de forma, que é esse mobiliário básico, ao qual você se referiu.
GF: A casa foi sua primeira experiência no domínio da escultura. Adriana Herrera cita uma frase sua em um texto sobre sua exposição em Miami que se refere à sua impossibilidade de pintar naquela situação do Faxinal, por “estar longe dos meus estudos, da minha cidade, era distanciar-me de minhas memórias… Incapaz de criar nada, sentia dúvidas sobre mim como artista”.1
JB: Sim, foi a primeira relação com a experiência escultórica. E uma escultura em grande escala, numa paisagem real. Quando cheguei para uma residência de 15 dias, tinha à minha disposição tela, um rolo inteiro de papel para pintar, materiais de pintura, etc. No décimo dia, não havia conseguido dar um traço. A primeira coisa que pensei foi: “você é um charlatão, não é um artista. Você está enganando o quê, quem?” Nesse décimo dia, que virou também décima noite, porque não consegui dormir, isolei-me em um outro alojamento com poucos móveis e fiquei pensando. Por que não conseguia pintar? A essa pergunta respondi: “é porque estou longe do meu ateliê”. Pode parecer lugar comum, piegas, mas, para mim, é uma verdade: lido com o erro. Mais do que com o erro, com a derrota. É comum se deixar o ateliê a caminho de casa acreditando que fez uma “coisa”, “uma chance de…”. Chance de quê? Não sei, mas algo que vai me fazer… e volto todo animado para o ateliê no dia seguinte para me deparar com algo que na verdade não deu certo. É muito frustrante. Essa experiência de derrota é muito rica. Não é isso que vai me matar, não vou desistir. Aí vêm outras coisas, raiva, fúria… fúria não, por ser muito poético e não me dou esse direito. Mas raiva. E a raiva é uma matéria importante para mim. No Faxinal não havia nada disso, aliás, estava tudo muito suave para mim. Primeiro, por ser um encontro maravilhoso, com 100 artistas do país inteiro, que eu escutava falar, que não tinha contato antes. Levei, com custo a meu encargo, minhas filhas, minha mulher por estar um longo período distante delas. Mas estava longe da poeira espessa e sólida que é o erro. Essa poeira ficou no ateliê. Como diz um amigo, Bretas, a diferença entre uma boa pintura e uma má pintura pode ser uma pincelada. Preciso estar rodeado dessas coisas que não dão certo. E, no Faxinal, não havia essa chance, não havia o pincel sujo, mas um monte de pincéis novos…
GF: Pincel ou palha de aço…
JB: Pincel, que também uso. Tenho muitos no meu ateliê…; uns fininhos que uso às vezes para fazer desenhos, como por exemplo, a série de desenhos Externo e interno [1995-2004], que sempre esteve comigo. O Faxinal, então, complicou por isso. Pensei que a coisa mais honesta a fazer era produzir algo que dependesse exclusivamente do que tinha à minha mão. Já que estou nessa situação, é meio hipócrita, cretino até da minha parte, pedir para a produção mais tela, mais tinta… não deu certo, vou fazer de novo… Se estou nu, vou trabalhar nu. Pensei na paisagem, nas pessoas, pensei na neblina que, na maioria das noites, cobria todo o chão das ruelas e as casas dos outros artistas… “é essa matéria que preciso transformar, reorganizar, dar outra aparência”. Essa experiência tem a ver com a origem da minha pintura – a lona de caminhão usada, a transformação do aço, o seu processo de oxidação: desviar uma determinada matéria de seu destino. Estava sentado numa mesa e, num instante, me dei conta de estar em cima de um elemento geométrico, formado por uma combinação de verticais e horizontais. Um corpo cheio, palpável. Olhei à minha frente… a noite começava a encostar na janela, aquela noite que ainda não é noite, que tem a ver com não-lugar, com aquilo que ainda não é… Escrevi, então, a única coisa produzida em um rolo de 100 metros de papel Canson: “Preencher os vazios”. Enfiei a mesa, onde estava sentado, na janela. Nesse momento, destruí a mesa e a janela tais como eram, destruindo uma passagem entre eu e a noite. A janela não era mais janela, não servia como janela e a mesa já não era mais mesa pelo mesmo motivo. Se havia um trabalho, ele estava ali, naquela ação.
GF: O Faxinal parece ter sido um projeto diferencial em relação à cena artística de Curitiba, tanto por seu orçamento faraônico para os nossos parâmetros, quanto pela importância que teve na trajetória de alguns artistas, como no seu caso. No entanto, creio que as críticas de vários artistas e críticos de Curitiba são pertinentes ao questionar mais um caso de investimento sem continuidade, de ausência de uma política para o campo das artes. Têm-se, também, poucas informações,2 por exemplo, sobre os diversos acontecimentos como conversas entre os artistas, críticos, sessões de vídeos, cinema… gostaria que você falasse um pouco dessa experiência.
JB: O encontro de Faxinal foi idealizado pelo Agnaldo. Toda a vez que encontro algum artista que tenha participado do Faxinal, nós nos falamos com uma vontade imensa de que isso se repita. O Faxinal, que se escreve com x, quer dizer colheita. O Faxinal do Céu era um canteiro de obras da Copel, uma companhia elétrica lá do Paraná. Quando terminou a hidrelétrica, o governo ficou com um alojamento com trezentos chalés, num lugar mágico, isolado, a cinco horas de carro de Curitiba, sem nenhuma cidade grande, sequer média, por perto. Alguém teve a idéia corriqueira de desmontar os alojamentos e ir embora. E alguém teve a brilhante idéia de não destruir o que já estava pronto e usar o espaço para alguma coisa. E ainda um terceiro teve a idéia de usar para uma coisa mais qualificada. O Faxinal ficou conhecido como “universidade do professor”, sediando encontros de professores do país inteiro. Essas são as informações que tive. O governo gastou algum dinheiro para melhorar as condições desse alojamento, construiu dois auditórios bem equipados, com tradução simultânea… E isso lá no interior do Paraná, e não em São Paulo ou no Rio de Janeiro. O problema não é dinheiro, é de política e estratégia. Política de continuidade então… O atual governo do Paraná, por exemplo, não mexeu um dedo sequer na continuação desse projeto. Não tenho notícia de nenhum evento parecido com esse na América do Sul. Foram cem artistas plásticos de todo o país, não vinte privilegiados. Trouxe para uma região de maior atrito pessoas que estavam em regiões de menor atrito. Foi realizado um evento raro, altamente qualificado. Esses encontros e bate-papos foram intensos. Por exemplo, em uma noite fria, cem artistas embaixo de uma tenda, escutando uma palestra sobre processo criativo. Sabe quem era o palestrante? Paulinho da Viola, com um violão. O drama, a tragédia cotidiana que esse sujeito enfrenta para criar é a mesma que a sua quando está escrevendo um texto. Chego aqui, em sua casa, e me surpreendo com o calhamaço de coisas que você reuniu para nós conversarmos hoje. A gente lida com aquilo que ninguém pediu que existisse.
GF: Wilson Coutinho, em um dos primeiros textos sobre o seu trabalho, “O resto como beleza”,3 fala da idéia de um “ready-made desviante” no seu processo. De fato, ao contrário do procedimento duchampiano, você afirma, nas suas escolhas, o papel da retina, a ocorrência visual, o impacto visual… a sua utilização da oxidação veio por essas marcas na lona…
JB: Pois é, tem, também, essa questão da aparência, do visível. Estava andando de carro, meio desesperado por conta de um problema… na época pintava a óleo (saí do Parque Lage fazendo figuração). Parei num posto de gasolina para encher o tanque do carro e segui, porque ia dirigir, sei lá, umas 10 horas, direto. E lá havia um caminhoneiro com uma lona aberta, lavando-a. Na medida em que ele ia molhando a lona, a parte molhada se diferenciava muito da seca. O cara ia muito rápido e eu não sabia o que estava acontecendo, tentando parar o carro direito para ir ao seu encontro, e pedir para ele parar – “Pára! Não continua, só um instante”. E ele meio atordoado, sem saber quem era eu… quando parou, tive alguns segundos para pensar no que estava acontecendo. A parte molhada estava mais homogênea porque havia um filtro entre a luz direta e a superfície da lona, que era a água. Ela tornava a superfície mais escura e mais homogênea, diminuía o grau de contraste entre as marcas que a lona recebia de cordas e outras coisas. A lona, propriamente, adquire com o tempo uma cor cinza, chumbo, oferecendo marcas mais claras. Era como uma pintura em uma tela de 11 x 8m. Precisava pensar muito rápido, pois o cara queria continuar lavando. Novamente, como a mesa na janela, havia alguma coisa ali que não sabia o que era. Mas havia alguma coisa… uma pintura ao contrário, que começava pelo fim. Uma pintura que depende muito mais do olhar que propriamente dos gestos. No final das contas, porém, é pintura, porque tem uma hora em que o seu olhar vai dizer: pára! Ele é quem manda. Essa lona escura não serve, pensei, mas a que não está molhada, sim! Precisava pensar na velocidade… Paguei 20 reais para o cara parar de lavar e me permitir olhar e perceber a diferença, a quantidade, daquilo que mais tarde, iria chamar de “ocorrências visuais”. A lona de caminhão usada é um campo que reúne uma quantidade de acontecimentos.
GF: Você pagou 20 reais para o caminhoneiro parar de molhar a lona… e depois começou a trocar.
JB: Procurei, então, alguns caminhoneiros pelas ruas, por aqui mesmo, mas eles não queriam vender porque precisavam da lona. A única maneira de ter essa lona usada seria comprar uma nova e trocar com eles pela usada – o que, em si, já é uma parte do trabalho. A ação é a seguinte: pego uma lona novinha, limpa, sem nenhuma marca a não ser a logo do fabricante. Ela é laranja. Quando dou essa lona para o caminhoneiro, entrego uma matéria necessária para ele e desnecessária para mim, para obter aquilo que já não serve para ele, mas serve a mim, em uma outra paisagem. Não é mais a das estradas, vai para um outro lugar. O trabalho começa no posto de gasolina, na cooperativa de caminhoneiros.
GF: Você começa a atuar em um momento, que poderíamos chamar de pós-geração 80, com a volta da pintura estabelecida, ainda que questionada, mas absolutamente de atualidade. E esse horizonte pictórico é básico em seu processo.4
JB: O primeiro grande desequilíbrio que experimentei na vida foi vendo a Banhista, do Rembrandt. Devia ter uns 14 anos de idade, e, por volta dos 18, tive a oportunidade de estar em Londres e ver a Banhista, acho que na National Gallery. Nem sabia que ia vê-la. Foi uma experiência perturbadora. Lidando depois com pintura, esse quadro me revelou uma outra coisa: a dimensão. Com o Morandi foi a mesma coisa, que só havia visto em reprodução. Não era possível que aquilo fosse daquele tamanho. A Banhista tem alguns centímetros, e para mim, na reprodução, era uma mulher de 1,60m. E ela é miúda, maravilhosa… tenho a impressão de que desmaiei em pé por alguns segundos. Tive isso, também, na primeira vez em que vi Velázquez e Goya; depois com o Malevitch, em uma retrospectiva sua no Metropolitan Museum, que me silenciou por alguns dias. Sabia que havia visto alguma coisa que iria mudar minha vida. E mudou, realmente. Não tanto na pintura, propriamente dita, mas no meu comportamento. Talvez essa minha experiência com a pintura esteja relacionada à capacidade que ela tem de alterar escala e dimensão, o que talvez tenha a ver com a história da Banhista, de Rembrandt, e das garrafas de Morandi. Hoje faço escultura também, e me sinto completamente autorizado para me colocar em relação a esses dois meios. Na exposição no Instituto Tomie Othake, em 2004, que chamei “Duas margaridas e uma aranha”, coloquei em “L” duas pinturas grandes, de 4 x 6m, de uma série feita para o MAM, Rio de Janeiro, e a Aranha, instalação de mobiliário de forma piramidal.
GF: A pintura é, então, sua referência. E antes de entrar no Parque Lage?
JB: Imediatamente antes, estava tentando sair de um casamento… Estudei economia na PUC, mas não me formei. Entrei para a faculdade muito cedo…
GF: Mas você já desenhava…
JB: Meu caderno de matemática não tinha nenhuma conta… era todo desenhado.
GF: Como dizíamos há pouco, sua entrada no meio de arte se dá em um momento de afirmação da pintura. É também um momento de maior estruturação do meio de arte no Brasil, com a abertura de várias galerias e o fortalecimento do mercado, ampliação do campo editorial…
JB: Hoje, mais do que antes, é possível um artista viver do seu trabalho. Esse lugar de todos nós, galerias, artistas, críticos, é um lugar muito mais amplo hoje, tem um número maior de agentes, de indivíduos… As coleções privadas estão se tornando públicas. O colecionador está deixando de doar para museus para constituir a sua própria coleção, e abrir essa coleção para o público, produzindo publicações, empregando monitores, educadores, curadores, etc. A coleção do Gilberto Chateaubriand, ligada ao MAM do Rio de Janeiro, e a do João Satamini, vinculada ao MAC, de Niterói, são contribuições inestimáveis.
GF: E sua relação com os curadores e com os críticos? São profundas as transformações pelas quais tem passado a crítica nos últimos anos. Por exemplo, a crítica veiculada nas colunas dos jornais que, embora comprometida com certas linhas estéticas, guardava um caráter independente, e a crítica veiculada nos catálogos adquirem, a meu ver, um outro estatuto…
JB: É um outro suporte.
GF: … e uma outra circulação…
JB: Mas ainda um exercício crítico.
GF: Sim, um exercício crítico, mas, digamos, menos distanciado do artista. É o artista quem convida o crítico. Você começa a atuar nesse momento de transformação. Em 1987, as grandes colunas de crítica nos jornais praticamente começavam a definhar.
JB: Já comecei com o que está acontecendo agora. Como nossa paisagem é mais ampla, os suportes para a crítica talvez estejam mais distribuídos. Hoje há um maior número de escolas de crítica e de curadoria, como o Bard College, em Nova York. A curadoria é um exercício de crítica. Quando você seleciona um determinado grupo de artistas para tratar de uma determinada questão, você está exercendo crítica num suporte expositivo. Lido com isso com uma enorme felicidade, porque tenho experiências conflitantes em relação ao meu trabalho através da crítica. Você aceita um trabalho meu como um campo com certa qualidade, que outro crítico não aceita, e vice-versa. Tudo bem que um artista convide um crítico para realizar um trabalho. Sua resposta, aceitando ou não, produzirá uma posição crítica. É disso que o trabalho vive, da crise. Ele não é. Pode ser.
GF: Quando você decide fazer um livro e convidar determinadas pessoas, esse procedimento, digamos, é um tipo de introdução, que se inscreve na cena artística de uma determinada maneira. Por exemplo, no caso desta nossa entrevista: li várias críticas sobre o seu trabalho, com abordagens distintas, acentuando determinados momentos ou idéias. Além disso, cada crítico tem o seu universo; se, por exemplo, ele estiver interessado em Lacan, provavelmente vai tecer essa relação, etc. Como isso reverbera no trabalho? A meu ver há alguma coisa de genuíno quando os artistas buscam essa relação, e esse tipo de diálogo faz parte do nosso momento contemporâneo – o catálogo sai junto com a exposição, o trabalho se apresenta com a crítica.
JB: Preciso da crítica. Este livro, por exemplo, é um espaço de existência do meu trabalho, que existe no ateliê, fora do ateliê, nos livros e nos textos críticos. Isso para mim é importante, porque trabalho muito sozinho. Agnaldo Farias diz ter um carinho grande pelos artistas, porque eles passam o dia inteiro tentando inventar aquilo que ninguém pediu que existisse, e ainda têm que defender. Posso realizar o trabalho, mas não me dou por satisfeito de tê-lo realizado, mesmo que o aceite como bom, confiável, mesmo que reconheça nele uma força. Preciso que ele enfrente outros espaços e o da crítica, a nossa, a que vasculha, é importante.
GF: Recentemente, você me falou da surpresa do pessoal de teatro, do qual você é muito próximo, com a intimidade entre o artista e a crítica que existe no meio das artes plásticas e não existe no teatro.
JB: Realmente, reparo certa surpresa de algumas pessoas de teatro, com as quais eu lido, com essa proximidade, não só pessoas de teatro, mas de música, de cinema. Existem algumas questões. A crítica na nossa área é mais interessada em vasculhar o campo em que a obra se dá. Não basta só o julgamento, de gosto ou do que seja. Depois, a pintura é muito antiga, há muito que se dá à crítica. Vou te dizer uma coisa do fundo do meu coração: não acho que nosso trabalho tenha qualquer compromisso com o acerto. Se eu ponho o trabalho em público e o público gosta, beleza. Fico feliz porque o trabalho se comunicou de alguma maneira. Mas pode se comunicar pelo contrário. Nossa (minha) relação com a crítica é diferente, ela é complementar. Não é bem complementar, talvez seja um segundo território de existência do trabalho. Este existe para mim no ateliê; depois exposto, para o público; o terceiro espaço é o da crítica. É um espaço que vai produzir, à sua maneira, colisões que o trabalho deve sofrer … Tanto o artista quanto o crítico, e vou incluir o público, estão procurando a mesma coisa: um poema.
GF: Hoje, seja no universo das artes plásticas, do cinema ou do teatro, da música etc., há o divulgador que cumpre um papel intermediário. O mecanismo é o mesmo, embora os resultados sejam diferentes. Existe, creio, uma diferença básica: a crítica de cinema e ou de teatro que lemos nas colunas dos jornais é uma crítica de julgamento, na qual são avaliados diferentes aspectos técnicos, digamos, desde o desempenho do ator, o cenário, a iluminação etc. Errou aqui, acertou ali… Por diferentes razões, entre elas a drástica restrição das colunas de críticas de arte nos jornais e a preponderância do chamado jornalismo cultural, a crítica de arte, como já comentamos, se deslocou para os catálogos em uma relação mais de companheirismo, de testemunho, acompanhamento.
JB: É muito complexo. Um crítico de teatro que vai assistir a uma peça e diz que o ator não estava bem… o teatro se faz a cada apresentação. Naquela noite o ator podia não estar bem, mas isso não quer dizer que nas outras noites ele não estivesse ou estará. É uma crítica que congela um tempo que não pode ser congelado, que se refaz a cada dia. No nosso caso, com companheirismo ou não, a crítica é mais reflexiva; convida o leitor a pensar sobre o evento a partir do qual ela, a crítica, se dá. Já essa crítica rasa que julga em no máximo 20 linhas (quando não em 3) parece estar a serviço de um público que precisa saber rapidamente se aquilo que ele ainda não viu é bom, ruim, ou mais ou menos as duas coisas. Nós não temos um público a ser satisfeito. As artes plásticas têm um público a ser questionado.
GF: A pesquisa formal é um dado do seu processo de trabalho, de sua poética. Você tem esse apuro, esse interesse pelo que você chama de contingências visuais, circunstâncias visuais em que o trabalho acontece. Ao mesmo tempo, sua pesquisa formal se alia a um processo entre ordem e caos, exterioridade e interioridade, memória e tempo…
JB: Construo o trabalho lidando com informalismo e rigor formal. Quando pego uma lona de caminhão de 11 x 8m, com quantidades de ocorrências visuais que tendem ao infinito, e crio uma seção, essa quantidade de sinais que estava perdida agora está num campo restrito a um tamanho de 2 x 3m, por exemplo. Essas ocorrências ganham outro valor por conta das distâncias, das dimensões. Quando intervenho nesse espaço com verticais absolutamente rigorosas, em oxidação, por exemplo, o que estou fazendo é oferecer sobre esse espaço aleatório, caótico, uma espécie de grade construtiva. Nem esse espaço caótico me interessa, nem esse formalismo, mas o que resulta desse confronto, que é um espaço constituído pela existência simultânea desses dois acontecimentos. É uma equação entre esses termos.
GF: No seu trabalho, junta-se o interesse pelo rigor formal e títulos que derranjent, como diriam os franceses, que desorganizam, introduzem ruídos… Você se utiliza de títulos superbonitos como, por exemplo, Paisagem doméstica ou não me lembro o que dissemos ontem [Fotografia Frontal, 2002], ou ainda, Ok, ok, let’s talk [2006 ]. Aliás, poderíamos fazer uma história da arte só pelos títulos e suas transformações, como, por exemplo, na abstração com os “sem título”, “composição”, etc. O título explicita, de certa maneira, o grande conflito entre a forma e a linguagem, entre o tempo e o espaço. Pode ser uma entrada para o trabalho ou, ao contrário, a exigência de atenção visual…
JB: Todo o meu impulso na direção de um trabalho é formal, mas não basta. A partir da conquista de certa distância em relação ao trabalho, a coisa que quero que exista é que ele crie conexões poéticas com o cotidiano, com o homem. Isso me interessa muito. Você perguntou há pouco sobre o meu interesse pela forma. Estou pensando na forma sim, mas desde que a pesquisa tenha uma relação com qualquer drama humano. Às vezes, o título me ajuda a reforçar esse vetor, além do formal, o simbólico, como a experiência humana doméstica, talvez a mais poderosa delas. Ok, ok, let’s talk fala de dois, de cumplicidade, de amor, mas fala de solidão… e é ao mesmo tempo muito formal.
GF: Qual o estatuto da fotografia, veiculada como obra, no seu trabalho, sobretudo na série de A casa, ou da Open house?
JB: Começou como registro por uma necessidade de dar permanência a algo que era efêmero. Por exemplo, a série de fotos coloridas, que pertence a Frontal, da qual você falou, foi feita no Faxinal. Quem as fez foi a Dedina, minha mulher. Ela fez umas 300 fotos e escolhi dez. Que critérios me levaram a escolher essas dez? Aspectos perseguidos a partir de minha relação com a pintura. Registra algo que interessa, mas tem a ver também com as distâncias em relação ao campo visual, cor, gravidade… Era mais do que um registro. Escolhi o que se aproximava mais, que obedecia a uma organização pictórica – que não é o campo da fotografia, vai além do registro fotográfico, porque obedece a uma experiência que trago como pintor. Da série Frontal, por exemplo, tem umas cinco ou seis fotos que escolhi por terem uma área de branco do céu – que não é o céu, não estou nem aí para o céu, podia ser um estacionamento – mas tem uma relação de cor, uma divisão de espaço, um jogo de peso no campo visual. Também há registros importantes de Vicente de Mello e Silvio Pozatto.
GF: E o desenho?
JB: O desenho é o meu diário.
GF: É surpreendente a relação formal da série Externo e interno, de anos atrás, com A casa. Os Cadernos rápidos, de 1999, também são muito interessantes. São tipos de desenhos muitos distintos.
JB: Esses desenhos da série Externo e interno são anteriores aos Cadernos rápidos, mas os mostrei depois. Faço esses desenhos há muito tempo, mas nunca encontrei lugar para mostrá-los. Como falei, o trabalho existe no ateliê e existe fora do ateliê. Fora do ateliê tem que existir em determinadas condições, na minha opinião. E as condições ainda não tinham se dado para a série Externo e interno, pois eles são pequenos, reduzidos, aquilo funciona como um diário mesmo… O Cadernos rápidos é um trabalho feito de uma vez só, levou seis meses para ser produzido, e a idéia era, apesar de ser desenho, bidimensional, atuar como uma experiência instalativa.
GF: No Paço, ele atuou…
JB: Talvez… É tão leve o papel que ele se descola da superfície, e ao se descolar já não é mais bidimensional, se movimenta. É ferro… flutua feito borboleta, bate asas…
GF: A série Externo e interno já aponta para a experiência escultórica, que parece estar ali, na espreita, embora o horizonte seja pictórico…
JB: É engraçado você dizer isso, porque faço esses desenhos há muito tempo. Talvez apontasse para essa necessidade mesmo, não era com desenho, não seria com a pintura, mas alguma coisa na frente iria me facilitar a aventura no campo escultórico. Os desenhos já estavam sendo feitos e eu não sabia a serviço de que, mas havia essa necessidade. Talvez como uma espécie de balanço entre o que eu produzia na pintura e certo silêncio do após a pintura ter sido feita… como se parasse para dormir. Era o meu sono. Dormia desenhando.
GF: Você, agora, está voltando para a pintura…
JB: Glória, sou um artista que hoje entra no ateliê e tem um monte de esculturas pequenas para fazer – fotografia não, que é uma coisa que eu retomo, mas levo um tempo para retomar e ainda não estou motivado para voltar a ela –, certamente pintura, instalação, escultura e desenho são quatro meios que estão em permanente colisão dentro do ateliê e agora é isso… Não sei o que vai sair daí.
GF: Você inicia a sua produção em um contexto em que os parâmetros reguladores da história da arte se vêem questionados. Uma das grandes críticas à geração 80 era o sucateamento da história da arte, com referências de qualquer ordem. A meu ver, no entanto, essa pode ter sido uma das contribuições dessa geração de pintores ao revelar a fragilidade da suposição de um encadeamento linear da história etc. Hoje, por exemplo, os grandes museus buscam outras formas de apresentar suas coleções, sem esses encadeamentos estilísticos ou genealógicos. Além disso, museus, como o Louvre, por exemplo, têm apresentado uma série de intervenções de artistas contemporâneos, como a do Tunga, em 2005, e agora vai instalar uma obra permanente do Kieffer. A Fundação Eva Klabin também é um exemplo desse procedimento. Como artista, com esse lastro, com essa trajetória, como você se relaciona com a história da arte?
JB: Antes de mais nada, obrigado pelo “trajetória, lastro e etc.” Acho que ainda falta muito. É a história da arte que me colocou onde estou, não no sentido de que eu esteja inserido nela, mas do que a constitui, dos acontecimentos e do acúmulo de experiências. Isso me ajudou a ser artista. Mas talvez já não se possa fazer uma leitura linear, progressiva disso. Uma natureza poderosa do fazer é a de propor novas possibilidades. Essa característica pode estar atingindo a todos, curadores e etc. Então Museu de Belas Artes faz exposição de arte contemporânea, novas mídias etc. No fundo, não é uma grande preocupação minha.
GF: Como você vê o seu trabalho em relação às questões como arte/vida, arte/política, arte/situação…?
JB: Não me utilizo do trabalho para comentar diretamente ou chamar a atenção, diretamente, para o drama cotidiano. Não é, digamos, a matéria principal, mas espero que num dado momento o trabalho ofereça conexões com as diversas experiências humanas, sobretudo a do homem das cidades, apesar disso não ser uma prerrogativa para o trabalho. Sou bastante interessado em política e na dinâmica das sociedades. Uma parte minha deseja que ele, o trabalho, encoste ou até atravesse isso.
GF: Você montou ateliê quando?
JB: Comecei na rua Taylor, em Santa Teresa, logo que saí do Parque Lage, em 1991. Era um ateliê coletivo tinha o Venosa, o Luiz Pizarro e o Daniel Senise. Daniel e Pizarro já estavam de saída e entraram outras pessoas, algumas eu me lembro, outras não. Teve o Raul Mourão. Aí, o ateliê ficou apertado, havia muita gente… Eu precisava de um lugar mais vazio. Comprei um outro, em 1997, com o Venosa e a Courtney Smith. Estou lá até hoje. É o melhor lugar do mundo! É um lugar muito bonito, na rua Cândido Mendes, com vista para a baía da Guanabara. A boca da baía, o trânsito de navios, aviões… Já vi essa paisagem em tudo quanto é hora do dia, já virei noite ali, já passei três noites acordado trabalhando. Vi noite virar chumbo, virar luz do dia, virar amarelo no final do dia, virar prata no começo do dia…
GF: A sua experiência no circuito internacional tem sido bastante ampla. Existe, e sabemos disso, uma decalagem muito grande entre o que seria uma inserção na história da arte – e a produção dos países periféricos, como o Brasil, é sempre um capítulo à parte –, e a inserção no circuito em plena expansão.
JB: Bem, não acho que seja uma experiência internacional tão ampla. Quanto à pergunta propriamente, de fato, uma inserção no mercado internacional é completamente diferente de uma inserção na história da arte – uma não tem a ver com a outra, apesar de serem caminhos que se podem cruzar. Hoje em dia, é mais fácil o trabalho percorrer o mundo lá fora, através de instituições, circuito de feiras, galerias internacionais, publicações e isso tem acontecido com meu trabalho, sim, mas sem dar nenhuma garantia de inserção na história da arte. Falar dessa inserção ou ter isso como uma ambição, uma expectativa que seja, seria, para mim, um desvio – não penso nisso. Esse jogo está nas mãos de centros mais poderosos, em outro hemisfério. O meu compromisso sólido é com o dia-a-dia no ateliê. O objeto permanente de meu desejo é produzir um trabalho de cada vez.
GF: E quanto às injunções do mercado?
JB: Não tenho nenhum problema com o mercado. É um campo com determinadas características e pronto. O mercado pode criar umas facilidades desde que não se aceite contrapartidas. Tem mais a ver com a circulação do que com a produção. Mas o mercado é complexo e se move, em minha opinião, para melhor. Se o mercado assimila o que eu faço, ótimo, se não assimila, paciência. Alguém me disse uma coisa sobre ser artista; disse que ser artista é igual a ser erva daninha. Às vezes, estou com dinheiro sobrando, às vezes devendo, e nesse balanço de coisas, eu me pergunto: se der tudo errado, o que é que vai acontecer comigo? Vou continuar sendo artista, porque nada vai impedir isso. Não sou herdeiro de nenhuma fortuna, não vivo de aluguéis, e me dedico diária e exclusivamente ao meu ateliê, portanto preciso que as galerias vendam meu trabalho. O que me parece interessante com relação às injunções do mercado é a velocidade na qual as coisas se dão. Por exemplo, o que nós falávamos sobre as coleções particulares que ganham dimensão pública. Colecionadores brasileiros, novos, jovens, estão contratando curadores para suas coleções, que poderão ser abertas para o público. Isso é uma mudança. Antes existia o artista e seu trabalho, um museu aqui, outro acolá. A cena agora é mais dinâmica. Se você vive no céu ou no inferno, você não vai deixar de ser artista. Eu seria um artista de qualquer maneira, no deserto, com cactos e lagartos, ou na floresta amazônica… O único que vai me impedir de ser artista sou eu mesmo se, por exemplo, um dia, resolver me dedicar a cozinhar ou a domar leões, sei lá. A minha vontade para com o trabalho tem origem no próprio trabalho.
Notas
- Adriana Herrera. “Proyecto A casa de Bechara”. El Nuevo Herald, Miami, 24 de setembro de 2006.
- Ver Agnaldo Farias. “Faxinal das Artes”. Em Faxinal das Artes. Curitiba: Museu de Arte Contemporânea do Paraná, 2002. Catálogo da exposição. Reed. Em Glória Ferreira (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
- Wilson Coutinho. “O resto como beleza”. RioArtes nº 22, Rio de Janeiro, 1996.
- Ver Luiz Camillo Osório. “José Bechara: processos e desvios” e Agnaldo Farias. “O sumo da violência” ambos em A Casa. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 2006.
Glória Ferreira, doutora em história da arte pela Sorbonne e professora da EBA/UFRJ de 1996 a 1997, é crítica de arte e curadora independente.