Saudade

Marcio Doctors

Rio de Janeiro, Brasil, 2008
Em Projeto Respiração, publicado pela Editora Cobogó e Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, 2012

 

Quando pensei em Bechara para a 9ª edição do Projeto Respiração foi por causa do seu projeto A casa, que teve início em 2002, a partir de uma proposta em Faxinal do Céu, município de Pinhão (PR), com curadoria de Agnaldo Farias e Fernando Bini. Esse projeto, que ficou conhecido como Faxinal das Artes, propunha reunir uma centena de artistas durante duas semanas para ocupar uma vila residencial que havia sido planejada para a construção da usina Copel, que, em vez de ser destruída quando da finalização da obra, foi transformada em abrigo criativo para projetos educativos e artísticos.

José Bechara foi convidado como pintor e saiu da experiência como escultor. Para aquém dessa generalização retórica, o fato é que, por uma série de circunstâncias, Bechara não conseguiu pintar, mas transformou a casa que estava ocupando em um manifesto plástico em que os móveis da casa foram expelidos pelas janelas e portas. Através deste ato de revolta formal e sígnica, o artista conseguiu expandir e requalificar o sentido de sua obra.

Ao contrário do que se poderia imaginar de imediato há uma forte relação entre suas “pinturas” feitas a partir de lonas de caminhão, peles de animais ou processos de oxidação, e o projeto A casa. Quem nos fornece a chave para decifrar esse enigma é o próprio artista em entrevista a Gloria Ferreira, no livro publicado pela editora Dardo sobre sua obra: “Essa experiência tem a ver com a origem da minha pintura – a lona de caminhão usada, a transformação do aço, o seu processo de oxidação: desviar uma determinada matéria de seu destino”.

“Desviar uma determinada matéria de seu destino” é a operação formal e conceitual que Bechara propõe quando lonas de caminhão abandonam a função a qual estavam destinadas e passam a operar no registro da arte como passagem de tempo; ou quando a casa, feita para acolher, se revolta contra seu destino e expele para fora o mobiliário, subvertendo a relação continente/conteúdo. Isso é possível porque Bechara recupera a irredutibilidade da matéria como forma: a lona de caminhão é tela; as manchas, abstrações informais; os móveis, estruturas geométricas. Ao operar a matéria como pura forma, ele atribui para ela caráter sígnico, capaz de provocar novas dobras de sentido. Só que esse desvio é mais propriamente um desvio em direção a si mesmo, no sentido de reduzir o objeto ao seu aspecto formal, e transformá-lo, assim, em matéria-prima para a arte: a cadeira é feita para sentar, mas, quando o artista exorbita a sua função, ela passa a ser capaz de indicar, por meio de uma operação conceitual e física de expulsão, a idéia de tensão e não de conforto, que lhe é própria,

Da mesma forma, a proposta do Projeto Respiração é buscar desvios a partir de uma situação de casa-museu de colecionador. É como se não bastasse o sentido expositivo instaurado por sua instituidora e fosse necessário desviá-lo do destino proposto por Eva Klabin para aproximá-lo do sentido original de que um museu é uma estrutura que necessita sempre ter seu sentido atualizado. E, assim como todos aqueles que têm participado do Projeto Respiração, José Bechara também adicionou mais uma camada de sentido para a coleção.

Para além da associação imediata entre uma casa-museu e o projeto A casa, o que me levou a convidar Bechara para participar do Projeto Respiração foi que a lógica implícita na sua ação artística – tal como a descrevemos – comporta desdobramentos capazes de aceitar o desafio de trabalhar com uma casa, uma coleção e uma personagem, sem ter de repetir a dinâmica da contenção/explosão/expulsão, que, por motivos óbvios, seria impossível de ser aceita em um museu.

A intervenção proposta por José Bechara é resultado de uma conversa em que comentei que tinha a sensação de que Eva Klabin não havia morrido, mas que um belo dia decidiu ir embora, bateu a porta e deixou a casa tal como estava. Bechara, então, imaginou que a casa sentia saudade de sua antiga proprietária. Paredes, portais, escadas e armários embutidos se multiplicariam e preencheriam o vazio deixado por ela. Mais uma vez aqui a lógica foi a de desviar a matéria de seu destino. O que era uno é agora múltiplo. O que era objeto é agora sujeito.

A casa se replica porque sente saudade e quer preencher a falta que a saudade cria. Dessa forma, Bechara desconstrói o espaço, cria outro: metafórico e metafísico, como resultado da sua percepção de que quando Eva Klabin transformou sua casa em museu – ao musealizar sua existência –, criou um terceiro ente, para além da coleção e de sua residência, capaz de nos oferecer múltiplas percepções a respeito da vida, como o Alef de Borges. O gesto de Eva Klabin comporta uma visão lapidada que permite inúmeros reflexos de desdobramentos da realidade.

Através de Saudade, é como se todos os espaços da casa ficassem prenhes de sentido. Tudo passa a reverberar, e a casa adquire autonomia. A imaginação se sobrepõe à realidade. Os objetos adquirem vida. Como um corpo vivo a casa se desdobra buscando preencher o vazio que a ausência de Eva klabin criou. José Bechara desfaz o limite entre objetividade e subjetividade ao criar uma terceira via capaz de animar os objetos inanimados. Objetos capazes de sentir e que redefinem nossa percepção do espaço originalmente instaurado por Eva Klabin. O artista cria uma ficção barroca em que o mundo fala. Os objetos são ecos de si mesmos. O resultado, uma estética do excesso. A ferramenta de trabalho, o conceito. A execução, a redução da forma à sua condição radical de matéria. O método, o desvio.

Ele também cria um entrelaçamento, ou melhor, um campo de pulsões onde podemos localizar, ao lado da arte do passado, as manifestações contemporâneas, como a arte conceitual (o conceito preside a intencionalidade dessa interferência e legitima a idéia de desvio), a minimal art (a redução da forma à sua condição radical de matéria é a base sobre a qual se assenta a sua imaginação) e uma atalização do barroco, que é o curso subterrâneo que alimenta a imaginação de José Bechara e que direciona sua obra ao encontro de uma pureza que se esconde no excesso.