Clarissa Diniz
Rio de Janeiro, Brasil, 2020
Texto escrito para a exposição “Modos de Condenar Certezas”, de José Bechara na galeria Marília Razuk, São Paulo, 2020
Que parte significativa das pinturas de José Bechara advêm de uma relação de troca é um dado bastante conhecido. Proponho, todavia, que dediquemos alguns parágrafos à dívida que o artista adquire ao trocar, com caminhoneiros, lonas novas por aquelas que estavam em uso – as quais, repletas de vestígios do tempo e do trabalho implicados no transporte, se tornam os territórios da obra.
Ainda que seja possível fazê-lo, a este texto não interessa a dívida economicamente circunscrita à mais-valia produzida sobre a lona enquanto elemento do caminhão e a outra versão do mesmo material – a obra –, gestada ao sofrer a ação do artista e ser inscrita no campo da arte: assimetria financeira produzida e gozada entre dois estados de um único – apesar de transformado – corpo[1]. Reconhecer esse débito (que, ademais, atravessa a história da arte euroetnocêntrica, podendo ser entrevisto em práticas de apropriação tão distintas quanto os ready-mades ou os imaginários elaborados pelos artistas viajantes em seu rotineiro tráfico simbólico) é o ponto de partida sociopolítico para, aqui, pensar brevemente sobre os modos de sua realização formal.
É o próprio José Bechara que, como se depreende de suas entrevistas, nos adverte de que sua obra “está sempre atenta aos acidentes”: “alguma coisa cai, alguma coisa falha, alguma coisa falta…, e esse tipo de problema é o problema que, na verdade, dá fôlego e animação para perseguir, para fazer o próximo trabalho”. Para o artista, embora sua pesquisa possa ser compreendida a partir da chave da “abstração geométrica” (e, mais especificamente, do vocabulário construtivo), seu interesse não está na “afirmação de um mundo” através de um “instrumento de cálculo”. A geometria de sua obra é, por isso, “imprecisa”: “essas linhas, embora estejam aqui, estão numa condição de aparecimento e desaparecimento. (…) A geometria falha como falhamos, é imperfeita como somos imperfeitos, e deve produzir tremendos esforços para emergir, para existir. A vida é assim”.
Numa crítica à racionalidade moderna ocidental que – em campos tão contíguos quanto o da arte, da ciência ou da política – tudo anseia separar, organizar e determinar, José Bechara enfatiza seu elogio ao acidente em razão de sua imprevisibilidade e, consequentemente, pela capacidade de desafiar o poder centralizado da “toda poderosa” mão do artista. Nesse sentido, afirma que sua obra é “uma intenção em condições de ser afetada pelos acidentes”, a partir dos quais se dá “uma aventura mental pra organizar as próximas ações (…) na direção de se chegar a uma coisa” [2].
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Tornar-se disponível aos acidentes tem se dado, há mais de duas décadas, como um processo de experimentação que depende principalmente de duas presenças/fenômenos oscilantes: as lonas advindas dos caminhões e as oxidações que o artista produz sobre elas. Da combinação entre a superfície marcada das lonas e os efeitos da oxidação do cobre ou do ferro jorrados sobre as mesmas emergem as linhas, a cor, a espacialidade e a densidade de suas pinturas; organizadas, interferidas e tornadas mais ou menos visíveis a partir dos gestos de José Bechara.
Essa materialidade – devedora da plasticidade da lona e da oxidação – se constitui, portanto, através do tempo: do período de uso da lona à oxidação que, nas palavras de Bechara, se dá num processo de “indução e espera”[3]. Ao invés de pretensamente criadas pelo artista, a distribuição das manchas e os tons acinzentados que constituem a atmosfera cromática das pinturas advêm das lonas, bem como suas cores alaranjadas e azul-esverdeadas emergem das propriedades dos metais ali oxidados. O espectro de cores que, ao longo dos anos, foi tornando-se característica da obra de Bechara é, fundamentalmente, uma criação conjunta – inscrita no espaço-tempo distribuído entre os caminhões e os caminhoneiros, a chuva e o sol, a lona e seus recortes, o tempo, os metais, a umidade, as tintas, as fitas adesivas, a gravidade, as intenções e os acidentes, dentre outros – na qual é evidente que a agência não é exclusiva ao artista, nem restrita a algum dos elementos implicados no surgimento dessas pinturas, senão dispersa ao longo de sequências não-lineares de acontecimentos sociais, fisicoquímicos e estéticos.
Sob o impacto visual e espacial dessas obras – cuja escala ampliada e “padronagens” cromogeométricas saltam aos olhos por haverem sido elaboradas na condição de protagonistas das pinturas – camufla-se um sistema silencioso, lento e por vezes invisível de composição que, como confessa Bechara, revela seu interesse “na forma sim, mas desde que a pesquisa tenha uma relação com qualquer drama humano”[4]. A estridência estética de suas obras, por ser devedora de forças diversas, nos faz ver o quão cínica pode ser a ambição de soberania que ética e politicamente sustenta a ideia de autonomia da forma ou da obra de arte.
O “drama humano” ou, como Bechara também gosta de dizer, a “dimensão existencial”[5] de sua pesquisa reside, assim, menos em eventuais metáforas que a geometria ou alguma de suas características formais possam inspirar, mas, sobremaneira, numa economia do poder entre as matérias e as agências implicadas na gestação das pinturas – um sistema que, do início ao fim, situa o artista na posição de devedor. Em débito não somente por conta da apropriação originária da lona como também em razão de todos os “acidentes” que são, como ele nos adverte, corresponsáveis pela obra.
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De formação católica, não é raro escutar o artista referir-se à suposta assimetria entre os seres humanos e Deus. Numa conversa, Bechara comentou que passou muitos anos intrigado com a condição de que, herdeiros de um pecado original, viveríamos em torno dessa dívida impagável que sustenta, por sua vez, o gap epistemológico a partir da qual erige-se uma política de representação na qual Deus figura hierárquica, moral e cosmologicamente distante e mais elevado do que nós. A separação entre nós e Ele e, por outro lado, a missiva de que seríamos ou deveríamos ser à Sua imagem e semelhança angustiava Bechara filosoficamente, até o momento em que, invertendo os polos da relação, convenceu a si mesmo da reversibilidade dessa mandatória: “ora, se somos à imagem e semelhança Dele, Ele é à nossa imagem e semelhança”[6], concluiu.
A interpretação de Bechara simetriza os termos equacionados de um dos fundamentos do catolicismo ao entender que também Deus estaria em débito conosco, produzindo uma economia cuja complexidade inviabiliza saber ao certo quem é devedor e quem é credor. Devendo uns aos outros a referência (ou o capital) que nos configura como humanos ou divindades, estamos implicados num território de infindáveis relações: inseparáveis, indeterminadas, insurgentes. Destituídos de qualquer autonomia, nem nós, nem Ele – nem o sujeito, nem a forma – são, para Bechara, circunscritos em seus próprios termos, perspectiva a partir da qual se dão os interesses de sua obra: “Nem [o] espaço caótico [da visualidade da lona], nem [o] formalismo [da grade construtiva que faço sobre ela] me interessam, mas o que resulta desse confronto, que é um espaço constituído pela existência simultânea desses dois acontecimentos. É uma equação entre esses termos”[7].
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A dívida, essa velha conhecida do capitalismo, é também especialmente familiar para nós, ex-colônias (sic), dado o fato de que sua ficcionalização inventou um sistema econômico, político, religioso, policial, discursivo, cognitivo, moral, cultural – e estético – que nos subalternizou, fazendo com que, por meio do trabalho escravizado, tivéssemos que sanar a dívida que nos foi atribuída por um aparato de força e de violência de todas as ordens. Transformando-nos em devedores, o discurso e a economia da dívida elaboraram uma cínica racionalidade para o inegável fato de que, com a invasão e a expropriação colonial, passávamos a ser os grandes credores do mundo – fonte de recursos naturais, humanos e simbólicos; partícipes e protagonistas de uma nascente “economia global”.
Nesse contexto, pensar nos termos da dívida não é exatamente aderir à sua dimensão capitalista nem propor uma leitura economicista, mas sublinhar os interesses éticos e políticos de sua reiterada neutralização enquanto operadora de nossas ações e obras. Ignorar o quão somos devedores para, assim, produzir narrativas estéticas nas quais figuramos como um duplo de Deus em sua versão Toda-poderosa – reencenando, com nossas intenções, gestos e projetos, uma espécie de eterno big bang – parece desviar-nos da peremptória necessidade de nos educarmos para criarmos a partir das implicações de todas as forças do mundo, e não em detrimento ou a reboque delas.
José Bechara aponta nessa direção quando se dedica a sistemas de cocriação nos quais agem forças tão distintas quanto o próprio artista, as lonas e a oxidação, dentre incontáveis acidentes: “Ter dado certo é também um acidente. Todo acidente é bom. Eu lido com ele; eu conto com ele”[8]. Dissonante em relação aos parâmetros purificantes (“pureza é desonestidade”[9], dispara) de certa abordagem – costumeiramente construtiva, quase sempre geométrica – da forma, mas ao mesmo tempo filiado a ela por circunstâncias históricas e escolhas estéticas, a obra de Bechara situa-se a meio caminho entre a tradição formalista e a disposição a afetar-se com forças oriundas de outros territórios.
De alguma forma, é porque estão sob o peso dessas dívidas que as formas de José Bechara fazem “tremendos esforços para emergir, para existir”. Implicadas numa complexa e indestrinchável trama de débitos e créditos entre fenômenos e existências sociais, fisicoquímicas e estéticas, suas pinturas retroalimentam essa singular economia da arte, preferindo, ao seu habitual desejo de alforria ontológica, a dívida eterna.
[1] “A ação é a seguinte: pego uma lona novinha, limpa, sem nenhuma marca a não ser a logo do fabricante. Ela é laranja. Quando dou essa lona para o caminhoneiro, entrego uma matéria necessária para ele e desnecessária para mim, para obter aquilo que já não serve para ele, mas serve a mim, em uma outra paisagem. Não é mais a das estradas, vai para um outro lugar. O trabalho começa no posto de gasolina, na cooperativa de caminhoneiros”.
José Bechara em entrevista com Glória Ferreira. Quando a noite encosta na janela, 2007. Disponível em: https://josebechara.com/quando-a-noite-encosta-na-janela/.
[2] Depoimentos do artista no vídeo José Bechara – Visto de frente é infinito. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QMNtG0bv-2c.
[3] Depoimento do artista em conversa com a autora.
[4] José Bechara em entrevista com Glória Ferreira. Quando a noite encosta na janela, 2007. Disponível em: https://josebechara.com/quando-a-noite-encosta-na-janela/.
[5] Depoimento do artista em conversa com a autora.
[6] Depoimento do artista em conversa com a autora.
[7] José Bechara em entrevista com Glória Ferreira. Quando a noite encosta na janela, 2007. Disponível em: https://josebechara.com/quando-a-noite-encosta-na-janela/.
[8] Depoimento do artista no vídeo José Bechara – Visto de frente é infinito. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QMNtG0bv-2c.
[9] Depoimento do artista em conversa com a autora.