A espessura das coisas no atlas infinito de José Bechara

Bianca Dias
Rio de Janeiro, Brasil, 2025
Texto escrito para a exposição “Atlas Memória”, de José Bechara na Galeria Maneco Mullier: Multiplo, Rio de Janeiro, 2025

Como todo o real 
é espesso
.
Aquele rio 
é espesso e real..

João Cabral de Melo Neto

O percurso artístico de José Bechara se dá na mistura de multiplicidades. A exposição que agora acontece é a síntese de um longo trajeto de 35 anos que parte de um mergulho na pintura no Parque Lage e passa por outras experiências, como a escultura. Encontram-se aqui uma aguda percepção sobre a vida e a criação que inclui a dimensão do gesto, da memória e da presença das coisas em sua impregnação e pulsação.

Numa operação em que movimentos e ritmos juntam-se ao fazer artístico e, sobretudo, ao exercício pictórico, nuances e matizes de cores se intercalam por linhas que, por sua vez, vibrantes e errantes, vão e vêm depositando-se no espaço de experimentação em uma exploração cromática singular, com oxidações que testemunham a passagem do tempo, uma espécie de gramatura psíquica e sensível entranhada na existência dos objetos. 

Atlas-memória – também o título de uma obra – evoca um ensaio escrito pelo filósofo Georges Didi-Huberman a respeito de Aby Warburg, historiador de arte. O texto se configura como chave para o entendimento do processo de montagem de Warburg, estabelecendo conexões entre vida e obra, com ênfase no processo de criação de um último trabalho, o Atlas Mnemosyne, entendido como incompleto. E a incompletude parece ser fundamental para José Bechara: a dimensão do erro, do acaso, da fissura, do que não está dado por inteiro. 

O deslocamento do olhar e do sentido que Warburg empreendeu na sua “vida-criação” pode ser encontrado em Bechara que, na tentativa de achar sob rastros arqueológicos as rupturas necessárias, o desconcerto e a inquietação próprias do gesto criativo, vasculha o mundo e seu próprio percurso. O atlas de Warburg abriga uma enorme variedade de raridades e coloca em diálogo astrologia árabe, astronomia, história, alquimia, magia e muito do que foi esquecido no tempo, apagado pelo modelo racionalista do mundo.E esse é um aspecto decisivo no trabalho de Bechara, em que as imagens sobrevivem e retornam no mesmo movimento a partir do qual ele constrói também – com uma visão caleidoscópica que se afirma no conjunto de pinturas – o seu atlas particular.

Em Atlas-memória encontramos a dimensão da experiência em sua potência imaginativa. Trata-se de um conjunto de obras que abriga a própria história do artista em sua relação com a arte: aqui estão os vestígios do assombro da primeira mirada de Os banhistas, de Rembrandt; o alumbramento diante de uma mostra de Malevich que expandiu e explodiu sua relação com a geometria; o sentimento epifânico e infinito das idas ao Museu do Prado para revisitar Goya e Velázquez. As referências, no entanto, não se encontram traduzidas de maneira literal. Estão vivas e pulsantes, sustentando o enigma de um percurso que não se deixa capturar completamente.

O barroco, paixão do artista, está presente, em uma decantação próxima do exercício poético, na escuridão de alguns trabalhos, por trás de gestos que não se revelam, como um mistério que, a partir do rigor formal geométrico, dilui contornos e limites, mas é sempre poroso e aberto aos acontecimentos. Tal qual a astronomia de Galileu, o trabalho de Bechara não é plano. Com movimento e profundidade, guarda de forma surpreendente e disruptiva a centelha da inquietação barroca. A dimensão do gesto e da memória é ponto fulcral de um trabalho que, deslocando as coisas do centro, propõe novos ordenamentos. Tudo junto e em colisão: o barroco com certa apropriação do modernismo e, também, uma dissidência que abriga a imprecisão como ética. 

Ao expor um atlas, o artista também se expõe, se coloca em crise, acolhe o desvio, o acidente, danifica a ordem criando uma geometria hesitante em que as linhas surgem, desaparecem e ressurgem, condenando certezas. Se, de um ponto de vista formal, temos a relação com a geometria e o construtivismo, do ponto de vista simbólico há uma espécie de inquietação que abarca a existência. Em territórios fragmentados de cor encontramos a irrupção de epifanias visuais forjadas a partir de procedimentos formais claros, mas que preservam o enigma, as zonas de penumbra e os territórios indefinidos. Ao corromper certezas, seu trabalho abriga algo próximo do inexorável, quase musical. Está presente um ritmo visual, uma combinação singular com a abstração que estabelece um retrato do que não é visível, mas leva em conta a matéria. Desvelam-se fenômenos cromáticos em suas diversas manifestações e a presença, agora, de uma paleta de alto contraste em que as cores passam a ser entendidas como elementos construtivos, capazes de estabelecer novas relações espaciais. A pintura e a cor não são apenas representação, mas realidades vivas.

Desde o início, o acaso foi incorporado ao trabalho de Bechara. O processo de oxidação, por exemplo, surgiu por acidente quando o artista, manuseando lonas de caminhão, descobriu objetos ferrosos que causavam manchas, revelando uma relação cromática entre a ferrugem e o cinza esverdeado das lonas. Uma mancha cria um novo mundo em que a dimensão da aparição se dá pela memória: algo se revela e produz impacto que reverbera até hoje. A oxidação de emulsão ferrosa é a fina captura do acaso e das reações e presenças que se dão no trabalho, no entorno, no mundo. Não há espaço estabelecido, mas uma operação inquieta e desconcertante que, à revelia de um ponto de vista fixo, nos leva a experimentar diferentes abordagens espaciais e espessuras de mundo. Pisando no chão, José Bechara mira o enigma, a poesia e o infinito do cosmos.

Bianca Coutinho Dias