Sylvia Werneck
Miami, EUA, 2016
Art En Colombia
(imprensa)
José Bechara/Galeria Marília Razuk
Voadoras, exposição solo do artista José Bechara na Galeria Marília Razuk em São Paulo desenvolve um diálogo íntimo com o espaço expositivo. Bechara apresenta quase 20 trabalhos inéditos, em grande parte pinturas complementadas por exemplos de seus experimentos com projeções tridimensionais que tem avançado intensamente nos últimos anos. Em sua exploração da pintura, Bechara investiga o vocabulário da linguagem ao seu dispor: linhas retas que reforçam sua condição de marcas intencionais, o uso de pigmentos (quase sempre em estado puro e camadas carregadas, livre de misturas ou nuances) que ressaltam a materialidade como divisor de campos. Voadoras também apresenta várias obras em que blocos de cor convivem com uma gama mutável de ocres gerada pelo processo de oxidação ferrosa impressa sobre lonas de caminhão adotadas como suporte. A ortogonalidade que domina os seus trabalhos cria uma relação identitária com a estrutura do espaço arquitetônico e suas vigas de ferro, como se participasse do mesmo processo de construção: a caixa, o cubo, e a casa são elementos estreitamente interconectados na poética de Bechara. E por trás de tudo, uma reafirmação do domínio do intelecto humano sobre o mundo, que o organiza e preenche de significado.
“Aqui tudo parece/Que era ainda construção/E já é ruína”, Caetano Veloso descrevia o Brasil em sua canção protesto Fora de Ordem em 1991. Vinte e cinco anos depois, suas palavras ainda fazem pleno sentido. O trabalho de Bechara se situa entre estas duas instâncias: por um lado o desenho, o projeto, a construção de um abrigo, a casa como símbolo, lugar de repouso e domínio; por outro, a desconstrução da pintura que se lança em direção ao espaço e um render-se ao acaso, que dá liberdade à imprevisibilidade das manchas na oxidação. As linhas ritmadas obedecem à cadência de um espaçamento simétrico de continuidade infinita, interrompida apenas pelo processo de oxidação que atesta à inexorável passagem do tempo. Passagem esta impressa nas lonas de caminhão que trazem consigo a memória de todas as estradas percorridas.
Pintor de carreira solidamente estabelecida, José Bechara tem extrapolado o plano bidimensional já há vários anos. Em algumas das obras de Voadoras, o artista multiplica o plano pictórico através de painéis de vidro em sequência com sutis inserções de linha e campos de cor, que em grande parte conferem maior solidez ao pigmento e permitem, senão o “voo”, ao menos um flutuar além das paredes. Os materiais escolhidos pelo artista são comumente empregados na construção de casas: o vidro, o metal, a madeira, se transformam em composições após planejamento acurado, um processo que também incorpora as características do local da exposição. Há sempre porém o momento em que toda esta ordem vem ao encontro do processo fortuito da oxidação: o oposto da projeção, o reverso do controle. Se na série A Casa de 2002 Bechara já jogava com a inevitabilidade do caos, com suas peças de mobília “cuspidas” de portas e janelas, no seu trabalho Elétrica voadeira (2016) a referência ao lar é mais indireta. Nele um disco de mármore contrapõe seu peso à leveza de painéis de vidro. O desenho no espaço se dá não apenas pela forma dos materiais sólidos, mas também nas sombras destes elementos contrastantes, por fim acentuado pela luz neon. O jogo cria igualmente outros espaços: os elementos que estruturam o trabalho, tais como os cabos de aço presos ao teto, se veem expostos e integrados na composição. As imagens do entorno também entram em jogo ao se refletirem na superfície do vidro; agora o mundo está sendo atraído para dentro da obra. Ainda nesta sala, Sobre Amarelos (2014) opera essa mesma inclusão do ambiente de forma ainda mais enfática. A parede que sustenta a instalação foi pintada na cor dos cubos que pairam à sua frente. Em ambas as descrições técnicas as sombras são identificadas como parte da obra.
Ainda que a matriz do desenvolvimento de sua poética deva algo ao Construtivismo, José Bechara ultrapassa as fronteiras do universo artístico e insere a dinâmica da vida dentro de seu processo criativo de forma evidentemente sutil. A dicotomia entre o seu Rio de Janeiro, o seu Brasil, e os temas da realidade comum como um todo se faz presente em uma expansão sem fim das possibilidades artísticas e das perspectivas sobre como ser no mundo de hoje. A julgarmos pelo que temos passado em termos sociais, políticos e econômicos, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, nossa permanência no planeta tende a ser como a obra de Bechara: de contrastes agudos, equilíbrios precários, e uma alternância entre o caos e a ordem, o peso e a leveza, a sombra e a luz, planejamento e confusão. O que perdurará enfim? A construção ou a ruína?