Suzana Velasco
Rio de Janeiro, Brasil
Segundo Caderno, Jornal O Globo, 2008 (imprensa)
Enquanto criava suas interferências na Fundação Eva Klabin, o artista plástico José Bechara se lembrou da maquiagem que sua filha mais nova fazia quando sentia saudades da mãe, imitando-a enquanto ela não voltava para casa.
– Ela ficava lindamente borrada – diz Bechara
O artista também está borrando a casa-museu da Lagoa, como se ela estivesse com saudades da dona, Eva, e vai mostrar o resultado a partir de amanhã. Enquanto isso, ele experimenta sua própria maquiagem em projetos completamente novos em sua carreira, que serão exibidos ao público a partir de quarta-feira da semana que vem, na galeria Lurixs, em Botafogo.
“Saudade” é a nona mostra do Projeto Respiração, que, com curadoria de Marcio Doctors, leva intervenções de arte contemporânea para o acervo clássico da fundação, reunido pela colecionadora Eva Klabin e mantido em exposição para visitantes. Ao ouvir Doctors dizer que a casa parecia não saber que Eva morrera, e que ela poderia voltar a qualquer momento, o artista pensou em como ficaria essa casa com saudades de sua proprietária:
-Imaginei um espaço muito bem cuidado por uma senhora zelosa, mas que não sabe que essa mulher tão ordenadora morreu. Ela está apenas demorando a voltar. Isso causa uma saudade profunda, cria umaperturbação. A casa passa a se reproduzir espontaneamente enquanto espera por Eva, talvez louca de saudade, de amor – explica Bechara.
A fábula da casa que se multiplica é traduzida, pelo artista, em móveis que se reproduzem fora do lugar. As “novas” partes da casa – a sapateira que guarda roupas amassadas, em vez de sapatos, a escada desordenada no meio da sala do casarão – são reconstruídas em alvenariae em madeira, num verdadeiro trabalho arquitetônico, de articulação como espaço.
– Não queria que o espectador precisasse procurar pelas obras com lente de aumento, nem fazer algo discrepante da casa. Talvez em algumas peças o visitante tenha que procurar um pouco mais. Mas não é um jogo de armadilhas, isso seria muito entediante – afirma o artista.
Oxidação é ponto comum nas obras da galeria
Para quem conhece o percurso artístico de Bechara, é inevitável associar esse trabalho com a escultura-instalação “A casa”, que marcou o Museu de Arte Moderna carioca, em 2004, e influenciou obras posteriores. Mas,enquanto ali os dois cubos de madeira, em escala monumental, expulsavamos móveis para o exterior, aqui Bechara se volta para o interior da casa. Apesar de formalmente distintas, as duas peças se relacionam coma memória dos objetos.
– Quando fiz “A casa”, as pessoas me perguntavam o que havia no interior dela, e eu dizia que era um abismo. Meu interesse formal era pelo exterior da casa, seus elementos geométricos combinados – afirma. – Do ponto de vista simbólico, a casa expulsava móveis impregnados por uma presença. Agora,também existe um movimento desses objetos, que se replicam por contaprópria, impregnados de memória.
Na exposição “Sobremirada”, na Lurixs, Bechara se desvia desse caminho e expõe peças completamente diferentes, unidas pelo processo de oxidação dos materiais. Os tons de verde e azul de “Cobre duas” surgem da oxidaçãode uma emulsão de cobre sobre lona. Na madeira, a emulsão do metal, emestado bruto, ganha tons terrosos, que, junto à tinta a óleo, compõem as pinturas “Gorda comigo” e “Gorda contigo”. E “Gelosia” une três lâminas de vidro com faixas formadas pela oxidação de uma emulsão de ferro – uma união relacionada ao espaço da galeria, que determinou a própria montagem da obra.
– A combinação de várias lâminas de vidro cria um volume quase escultórico, implica uma relação quase arquitetônica com o espaço – explica Bechara, que diz ter começado suas experiências com os novos materiais pelo fim, a exposição. – Em geral, o artista, inclusive eu, expõe após um período de investigação, em que domina razoavelmente os procedimentos emateriais. “Sobremirada” oferece o caminho contrário: a exposição é uma idéia do trabalho que ainda virá. São obras com as quais eu começo a lidar agora. E isso implica um risco maior.
Bechara exibe ainda uma série de desenhos inéditos, intitulados “O ar”, no anexo da Lurixs, em frente à casa principal da galeria. Ali ele expõe também outro filhote de “A casa”: a escultura “Cega”, da série “Open House”, que, antes trabalhada em madeira, agora ganha sua versão em alumínio fundido.
As exposições coroam um ano incessante em que o artista teve seis individuais e participou de oito coletivas, no Brasil e no exterior, e ainda lançou o livro “José Bechara – Blefuscu”, pela editora espanhola Dardo. Exausto, impaciente e ansioso, Bechara está louco para voltar a freqüentar seu ateliê em Santa Teresa e mergulhar no processo criativo com os novos materiais e procedimentos que vem descobrindo. Mas não tem do que reclamar:
– Estou muito apreensivo e mal-humorado, mas não trocaria este estado por nada.
Um artista dos anos 90
Carioca, 51 anos, José Bechara começou a estudar pintura em 1987, no local que mais respirava arte no Rio dos anos 80: a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O artista é do grupo posterior àquele que agitou a cidade com a mostra “Onde está você, Geração 80?”. Abandonou a tela para explorar o processo de oxidação de metais, especialmente sobre lonas decaminhões, trabalho que o tornou conhecido com um dos principais nomes da Geração 90. Há alguns anos explora o tema da casa, em esculturas e instalações de grande inventividade e rigor geométrico.