Luisa Duarte
Rio de Janeiro, Brasil, 2014
Ensaio crítico
A cristalização do tempo no espaço surge como a operação mais conhecida da obra de José Bechara. Seja pela oxidação sobre as lonas de caminhão que transformavam a tela/pintura em processo, seja nas peles de gados nelore, ou mesmo nas instalações da série A Casa.
Se essa busca por conter a hemorragia das horas em um determinado lugar pode ser visto como o páthos principal que anima grande parte do trabalho, outra característica indelével de sua poética é a variedade de linguagens que a produção assume ao longo dos anos, mostrando-se capaz de experimentar, correr risco, não se acomodando no campo da pintura, no qual tudo teve início.
Não que, nesse campo, as coisas sejam plácidas, como já apontamos. Tendo como princípio a virada dos anos 1980 para os 1990, a obra pictórica de Bechara se constrói como um misto de experimentação e eloquência visual, ou seja, não quer ser somente um acontecimento plástico, mas tampouco prescinde da dimensão formal e de sua potência.
Ao escolher “pintar” a partir da apropriação de lonas de caminhão e fazer da oxidação produzida pelo tempo a gênese do aparecimento visual, o artista abre mão do gesto pictórico clássico, manual, e atua como uma espécie de editor. Tem como elemento fundamental de sua técnica o tempo, que trabalha como uma espécie de coautor da obra. As modificações que as lonas sofrem estão, a todo o momento, sendo guiadas pelo acaso e, ao mesmo tempo, dirigidas pelo artista, que negocia com as transformações da matéria. Ou seja, de um lado há um processo sobre o qual Bechara não delibera, por outro, tudo ali busca ser ordenado. Um método, amigo do acaso, se instaura.
Nunca me esqueço de um dia, em uma visita ao seu ateliê, quando, ao ver uma tela com listras verticais, lembrei-me do trabalho da norte-americana Agnes Martin (1912-2004). Ao recordar de Martin, uma artista reconhecida por sua pintura de caráter minimalista, acho que peguei no ar, meio sem querer, algo pulsante na obra de Bechara, a presença de um modo de operar que remete aos anos 1960 e 1970, ou seja, que incorpora, a um só tempo, a experimentação e uma visualidade dirigida, seca, sem lirismo. Gestos contrários à “expressividade” efusiva que marcou a volta da pintura nos anos 1980.
Se na pintura, que é a sua morada de origem, o artista começa subvertendo os termos da época, com o passar dos anos questões ali presentes irão se revelar sob maneiras insuspeitas, em outras linguagens. Na série Casa, um elemento cotidiano se torna motivo para a convulsão das formas do dia a dia, em instalações que empilham, deformam, expulsam, acumulam aquilo que é, no registro ordinário, o lugar do estabelecido, da solidez, da proteção, das coisas que estão no lugar – em suma, a casa.
A nova safra de trabalhos que vemos aqui, denominada até agora de Desenhos espaciais ou Esculturas gráficas, multiplica a polifonia característica da obra de Bechara. Se o livro Desenhos – como piscada de vaga-lume já mostrara uma produção até então desconhecida do artista, aqui podemos entrever o que seriam desenhos em três dimensões.
Desenhos espaciais têm a leveza do traço, a aparência do acaso que permeia sua obra, bem como na sua forma final, apesar da rigidez do fazer escultórico; parecem não seguir um roteiro rígido. Estamos diante de uma dança que incorpora o imprevisível.
O elo que articula os cubos vazios e cheios revelam um traçado gráfico sob uma natureza escultórica. Nessa trama já se encontra lançada uma tensão. Uma forma clássica, euclidiana, o cubo, o quadrado, está a serviço de um desenho informe, que intenciona uma organicidade que caminha na contramão da resistência do grid.
Esta é uma primeira inflexão colocada em jogo pelo trabalho. Uma outra pode ser vista quando a obra está posta em contato com um lastro de “natureza”. Feita de cubos que se entrelaçam por retas, esses desenhos escultóricos, quando postos em meio a uma vegetação que cresce sem pedir licença tem um dos seus significados potencializados. Se as listras minimalistas de Agnes Martin aparecem como uma lembrança possível ao ver uma produção pictórica de Bechara, aqui, o cubo, elemento geométrico que tem uma secura e uma frieza similar ao grid, à grade moderna, está articulado de forma não linear, como um jazz, no qual a chance da improvisação está dada. Assim, quando posta contra a natureza, esse aspecto se amplifica.
Rosalind Krauss certa vez afirmou:
A grade anuncia um desejo de silêncio da arte moderna, sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso. Não se poderia nunca ter escolhido solo menos fértil. Desenvolvimento é precisamente ao que a grade resiste. Aplanada, geometrizada, ordenada, ela é antinatural, antimimética, antirreal. É como a arte se apresenta quando dá as costas à natureza.
Vejamos outros elementos que corroboram essa tese a respeito de uma tensão interna presente na obra do artista. As Esculturas gráficas são operações tridimensionais que convidam a uma mirada sobre o desenho. Trata-se de peças geométricas, e os seus cubos cheios e vazios surgem dispostos de maneira orgânica no espaço, como se não obedecessem ao controle que subjaz a sua forma, como se dissessem, sim, sou rígido, reto, monocromático, mas fico onde bem entendo. Tal modo de aparecer no mundo traz consigo uma contradição que gera uma intensa voltagem poética para a obra.
Tais trabalhos são guiados por ícones de certa modernidade – o cubo, a grade –, mas ganham vida de maneira a subverter a frieza e a harmonia desses ícones. É possível neste momento lembrar da “geometria sensível” de que nos falou Waldemar Cordeiro. Ele discorria sobre uma vontade de contaminar com dimensões da vida e da estética aquilo que é proveniente da razão e da ordem – predicados tão caros à modernidade.
Outra referência que surge ao olhar esta nova série de Bechara é Franz Weissmann. Além do recorrente comentário sobre uma primorosa leitura do espaço em suas esculturas que dão a ver o vazio, nas quais o ar ganha espessura, é Weissmann quem realiza Cubo vazado, em 1951. Se a escultura é, de fato, “a primeira obra rigorosamente concreta criada no Brasil”, o artista já estava interessado em sublinhar não a forma ou o material, mas sim o impalpável, tornando o material secundário. Era o germe do que viria a ser o neoconcretismo.
Este breve retorno histórico só ocorre porque a obra de Bechara, como um todo, incorpora vetores densos que fazem rememorar o passado nos conectando ao presente. A ruptura neoconcreta tinha como objetivo perfurar a rigidez concreta e para isso trouxe para a fatura da obra a vida mesma. Bechara, desde as pinturas ready-made, passando pela convulsão da Casa, até os Desenhos espaciais, está, a todo o momento, lidando com os dois polos, realizando assim uma geometria sensível à sua maneira. As lonas de caminhão se tornam “pele” de um corpo em constante modificação, cúmplices da vida (ou seja, da finitude); as Casas subvertem um vocabulário que sinaliza estabilidade, evocando o caos, em um turbilhão de atos que exibe o resultado de um ato fruto de agonia, vontade de transformação, mudança, e não de acomodação, controle.
Os Desenhos espaciais nos dão a ver que “o vazio tem solidez, é uma matéria”. Ou seja, a partir de elementos clássicos do vernáculo da arte, Bechara realiza uma desconstrução das formas clássicas fazendo uso delas, as exibe atravessadas pelo acaso, ritmadas pelo imprevisível, deixando entrever vazios e cheios, fazendo com que cada cubo esteja posto em xeque em sua duração, na sua vontade de eternidade.
As obras de Bechara, no fundo, são sabiamente amigas dos fundamentos que imprimem solidez, estabilidade, régua e compasso, porém lida com esses índices com vias a desarticulá-los, como se indagasse o quanto tais bússolas são mesmo tão seguras assim. Assumir essa ambiguidade de forma consciente e lúcida é o que torna a produção do artista um acontecimento em que presente e futuro, projeto e acaso, se encontram acasalados. Se o desenho é na sua origem o momento do esboço, do projeto, daquilo que se experimenta para vir a se fazer o trabalho idealizado, e a escultura é, ela mesma, considerada tradicionalmente a obra final, sólida por natureza, a produção de José Bechara nos Desenhos espaciais, ou se preferirem, Esculturas gráficas, nos proporciona os dois lados da mesma moeda simultaneamente.