Jacopo Crivelli Visconti
Rio de Janeiro, Brasil, 2011
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar.
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar
Manuel Bandeira, Última canção do beco
Quando José Bechara ainda era, apenas, pintor, Wilson Coutinho, ao discorrer sobre seu trabalho, acabou falando com destaque, e premonitoriamente, do muro: “O Muro é uma coisa que fecha, que circunda e que impede (…). O Muro, que é limite e proteção ao mesmo tempo, se torna um aquém”.[1] Coutinho referia-se ao muro como suporte físico da pintura, superfície em que os quadros abrem fendas, janelas que se tornam pontes para “um Cosmo muito além de nós. Aquele que, de certo, está fora dos Muros”, mas é interessante notar como, mais de quatro anos antes da experiência seminal do Faxinal, a obra de José Bechara despertava já pensamentos de alguma forma ligados a questões de matriz arquitetônica. Por essa mesma época, ao lembrar sua primeira viagem a Berlim, Rem Koolhaas descreveu uma cidade deserta, dominada por um muro onipresente e que, contudo, não podia ser considerado propriamente arquitetura, por ser, na essência, ausência, vazio. Nessa paisagem metafísica, saída de um quadro de De Chirico, o tempo se dilata e se comprime: As if time is an accordion – a Disney archeology – all of its successive physical mani- festations seem simultaneously present in this deserted city (Holiday? Exile? Atomic threat?).[2] A ideia de um tempo flexível, e eventualmente, quem sabe, até reversível, era de resto coerente com a descoberta fundamental de Koolhaas em Berlim: it is not East Berlin that is imprisoned, but the West, the “open society”. In my imagination, stupidly, the wall was a simple, majestic north-south divide; a clean, philosophical demarcation; a neat, modern Wailing Wall. I now realize that it encircles the city, paradoxically making it “free”.[3] Óbvia para quem conheça minimamente a geografia alemã, a “descoberta” de Koolhaas, que lembra de maneira curiosa a descrição do muro feita por Wilson Coutinho, em seu ser “limite e proteção ao mesmo tempo”, tem uma força metafórica evidente e inegável: a fuga do regime socialista para o capitalista era uma fuga para dentro, como a de um leão que tentasse desesperada- mente entrar na jaula. A cidade, na visão exemplarmente pós-moderna do arquiteto holandês, se torna abstrata, intangível nessa sua lógica paradoxal, em que o tempo vai em todas as direções, e o muro liberta ao passo que aprisiona. E, no entanto, apesar de surreal, ela é apreensível idealmente: a Berlim de Koolhaas existe em sua totalidade, e de forma exclusiva, em algum lugar da nossa imaginação, como o quarto de que fala Manuel Bandeira.
Os cubos de José Bechara, apesar da evidente fisicalidade dos conjuntos esculturais que integram,[4] e da qualidade quase sensual de seus materiais, também pertencem, antes de mais nada, ao domínio do intelecto, em primeiro lugar porque podem ser vistos simultaneamente de todos os lados, faculdade que, entre outros, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty descreveram como exclusiva da imaginação. Nas palavras de Sartre, não conheço um cubo a não ser que tenha visto suas seis faces; [contudo] posso ver no máximo três ao mesmo tempo, nunca mais do que isso. (…) Mas, por outro lado, se eu penso num cubo como conceito, penso nas suas seis faces e seus oito ângulos ao mesmo tempo…[5]. O fato é, evidentemente, que os cubos de José Bechara são, ao mesmo tempo, cubos e desenhos de cubos, e por isso mesmo um dos desdobramentos recentes, e naturais, dessa vertente da sua produção é o das chamadas Esculturas gráficas, título coletivo que, dos cubos e das outras formas, também vazadas, que as compõem, busca enfatizar ao mesmo tempo o aspecto físico e o gráfico, o tangível e o intangível, o que tem peso e matéria, e o que é apenas mental. O fato de, ao longo dos últimos anos, o artista ter introduzido variações de escala, cor, matérias-primas e acabamento em todas suas experiências esculturais só faz ressaltar como o núcleo das obras, o que garante a sua continuidade e coerência, apesar ou para além dessas mudanças, reside alhures. As imagem da exposição A casa, no MAM do Rio de Janeiro (2004), confirma essa impressão: quase contra- dizendo a escala monumental do trabalho, a escuridão que o rodeia e a ausência de pessoas o assemelham a uma maquete, isto é, ao que de mais próximo existe, no mundo real, de uma ideia. A ausência de portas e janelas autênticas, substituídas por simples aberturas em algumas faces, coloca o observador, segundo Delfim Sardo, na mesma condição de “Gulliver à sua chegada a Lilipute: não podemos entrar, não podemos transpor a diferença de escala nem compreender o interior das pequenas construções”.[6] Mas existe, talvez, outra função para essa ausência, outra “razão de não ser”: o que se tem aqui é uma ideia, o conceito universal de casa, por assim dizer, que tem de ficar, portanto, consciente e programaticamente isento de qualquer característica particular. Portas e janelas constituiriam concessões desnecessárias, contaminações da pureza geométrica da casa, que deve conter o mínimo número de elementos que a tornem compreensível, ou seja, neste caso, apenas a forma, elementar, do cubo.
Tanto os cubos sólidos quanto os mais etéreos, vazados, constituem de fato desdobramentos da casa primordial, onde tudo começou. A história é conhecida: sozinho no seu ateliê no Faxinal, incapaz de pintar, José Bechara transforma uma singela casa de campo em enorme instalação, dando vazão ao que parece ser, olhando retrospectivamente, uma tentação sempre latente em seu trabalho: a aspiração se- greda a fazer, além de pintura, escultura. O momento decisivo, nesse processo, é quando o artista levanta mesas e cadeiras e as deixa, em equilíbrio bastante precário, como que fugindo apressadamente da casa, debruçadas para fora, a olhar a noite que, nas palavras do próprio artista, começava a se encostar na janela. Além do in- discutível impacto visual dessa suspensão, que a sucessiva repetição do motivo em outra escala, ao invés de mitigar, só fez aumentar, José Bechara descreveu o processo como uma espécie de sublimação das ameaças internas, das tensões e lutas que toda casa encerra, e das quais os móveis estariam fugindo: É uma casa fantasma. A casa, o ninho, é o lugar que guarda o indivíduo, que o protege, que dá a ele a chance de se proteger… Se proteger do quê? Do entorno, das ameaças externas… mas, na verdade, A casa fala de ameaças internas e não externas…[7] A inversão do significado simbólico da casa (isto é, de abrigo das ameaças externas para lugar de conflitos) não é inédita, mas merece ser enfatizada, mais do que por seu significado específico, por ser a inversão uma das estratégias mais frequentes no trabalho de José Bechara. As maneiras como essa inversão pode se dar, contudo, são as mais diversas: em alguns casos, fica por conta de lonas de caminhão que, quanto mais vividas, sujas e gastas chegam às mãos do artista, mais “novas” e estimulantes se tornam. Ou seja, ao subverter o uso das lonas, de prático para estético, as suas características físicas acabam tornando-se o oposto do que eram: o desgaste e as manchas, em especial, tornam-se atributos positivos. Ao falar da sua súbita epifania, a primeira vez que viu um caminhoneiro que lavava uma lona, o artista afirma que “havia alguma coisa… uma pintura ao contrário, que começava pelo fim”.[8] Evidentemente, o procedimento, ou o olhar, é análogo ao caso de outras séries, como as pinturas em que o artista usa pele de animais, ou as obras em que intervém com um processo de oxidação sobre vidros e telas. Em todos esses casos, de fato, o que José Bechara percorre é uma espécie de caminho para o antes, uma sutil, quase imperceptível inversão do proces- so natural de envelhecimento. As pinturas e instalações em que o artista emprega oxidações, lonas de caminhão e peles de animais são como instantes congelados de um processo que enfatiza a mudança de estado, e dessa forma a própria passagem do tempo, e inverte a direção do tempo, se isso for concebível.
Se a crítica enfatizou a proximidade conceitual e formal de alguns trabalhos de José Bechara com a obra de Hélio Oiticica e Gordon Matta-Clark, entre outros, essas considerações permitem aproximar a sua produção da de outro artista da mesma geração deles: Raymundo Colares. Na conhecida série de pinturas em que reproduzia carrocerias de ônibus, o artista mineiro, como o próprio José Bechara, utilizava vários suportes, por vezes em planos distintos, conseguindo congelar o movimento do veículo sem arrestá-lo, sem torná-lo linear ou compreensível: poder-se-ia dizer que os ônibus de Colares chegam de todas as direções e vão para todas as direções. Da mesma forma, o tempo dos materiais empregados por José Bechara em suas obras é uma rua de mão dupla, em que tudo avança e retrocede a partir do tempo singular e imóvel da obra. E se tudo avança e retrocede, e a inversão é uma das poucas constantes num trabalho que periodicamente se reinventa, com viradas abis- mais e surpreendentes, e cuja coerência vai se revelando aos poucos até aos olhos do artista, então pode ser que não seja excessivamente arbitrário imaginar, por um instante, que as cadeiras, as mesas, as camas e todos os outros móveis, apesar da interpretação corrente, não estejam fugindo para fora, e sim para dentro da casa, como os prófugos do regime socialista em Berlim. Isto é, imaginar que o filme do qual José Bechara nos apresenta um único fotograma corra na verdade na direção oposta àquela que nos pareceria natural, ou em ambas, exatamente como o tempo feito acordeom de Rem Koolhaas. Esse exercício da imaginação, imprescindível em se tratando da obra de José Bechara, apesar de programaticamente arbitrário permite redimensionar a importância da leitura “social” ou “antropológica” das séries de obras desencadeadas pela instalação no Faxinal. O próprio artista, ao descrever de maneira impagavelmente simples e direta a experiência, enfatizava seu interesse pelo resultado formal, pelo impacto evidente e direto da ação: Não se constitui o projeto uma “socioarte” ou uma “psicoarte”. Trata-se de trabalhar com elementos plásticos, reconstruindo e criando tensão formal (…). É natural reconhecer que os objetos familiares que ocupam a moradia – colchões, mesas e bancos – são formas e, por redução, são formas geométricas ou geometrizantes. Por exemplo, em geral, um banco é um círculo ou um quadrado sustentado por linhas, usualmente verticais; um colchão, um retângulo.[9] Ou seja, se é evidente que o trabalho é complexo e denso o suficiente para dar-se em distintos níveis, entre eles, sem dúvida, o de uma reflexão sobre o significado íntimo da moradia, não se pode redimensionar o interesse do artista pelo valor plástico do motivo da casa, seja quando ela é apenas um simples cubo, seja com o convencional telhado em duas águas que aparece nos desenhos das séries Externo e interno, Ar e Casa do futuro. Nesse sentido, reduzir esses trabalhos a uma reflexão sobre a casa como lugar simbólico, espaço do devaneio bachelardiano, ou sonho de consumo da classe média brasileira, seria como reduzir as muitas pinturas do Mont Sainte-Victoire ao amor de Cézanne pela natureza, e a um engaja- mento ecologista ante litteram.[10]
Essa compenetração de diversos temas, a maneira como as coisas se sobrepõem na obra e na leitura da obra, é, de resto, outra constante nos trabalhos de José Bechara, que, de fato, para além das diferenças bastante marcadas, parecem com relativa frequência construídos a partir de uma matriz binária, de uma dualidade de fundo. Como no caso das inversões, isso não quer dizer que exista uma única dicotomia preponderante, mas que as obras são frequentemente construídas sobre uma relação de oposição. É o caso, por exemplo, dos desenhos recentes, da série Ar, em que as casas, com a sua geometria singela, exemplar (de exemplo de livro escolar, por as- sim dizer, haja vista a sua simplicidade), são sempre confrontadas com uma mancha orgânica, de um azul ultramar, profundo e aguado, todas, características que contribuem para situar a tal mancha mais no âmbito do sonho do que do mundo real. Mas é o caso também, como já foi notado, do contraste entre a vida que impregna as lonas e as oxidações que se dão em linhas perfeitas, todas exatamente iguais (não será um caso, então, se elas acabam lembrando tão de perto, em alguns casos, as linhas de Daniel Buren, que também buscava uma pintura o mais impessoal e automática possível).[11] Ou ainda das peles de gado, tão cheias de vida e que, contudo, aparecem nas obras de José Bechara sempre cortadas em quadrados ou retângulos, formas o mais puras, geométricas, abstratas possível. Ou ainda, da série recente das Gelosias, na maneira como o vidro é, alternadamente, opaco e transparente, aqui também por força de oxidações. E também, claro, da maneira como, nas pequenas esculturas da série Open house, os cubos cheios se justapõem, encostam, se apoiam nos cubos vazios. Talvez a série mais pura, em que o esforço do artista parece ir todo numa única direção seja, significativamente, a dos desenhos coletivamente intitulados O outro.
Nessas jarras, vasos e garrafas quase morandianos, em sua simplicidade monástica e austera, descobrimos um artista diferente, não por acaso outro, como define justamente esse título, como sempre tão apropriado e pertinente. E que, como vários outros, foi provavelmente inspirado num texto[12] quase a ratificar, definitivamente, que o trabalho de José Bechara acontece, sempre, no embate da matéria, tão vibrante e viva, de seus quadros e suas esculturas, com as palavras, as frases e as ideias que esses mesmos trabalhos suscitam.
Notas
[1] COUTINHO, Wilson. “A ação – pesos densos”, texto incluído no catálogo da exposição José Bechara, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 1998, agora também em http://www.josebe- chara.com/pt/textos.php
[2] O.M.A.; KOOLHAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. New York: Monacelli Press, 1995, p. 219 [Como se o tempo fosse um acordeom – uma arqueologia Disney – todas as suas sucessivas manifestações físicas parecem estar presentes ao mesmo tempo nesta cidade deserta (Férias? Exílio? Ameaça atómica?)].
[3] Idem, p. 216 [Não é Berlim Oriental a ser aprisionada, e sim a parte ocidental, a “sociedade aberta”. Na minha imaginação, sem qualquer discernimento, o muro era uma simples, majestosa divisão Norte-Sul; uma demarcação limpa, filosófica; um nítido, moderno Muro das lamentações. Agora percebo que circunda a cidade, tornando-a paradoxalmente “livre”.]
[4] Refiro-me, aqui, às obras da série Open house, compostas em sua maioria por um cubo sólido, com algumas aberturas de onde saem pequenos modelos, estilizados, de móveis como camas, cadeiras e mesas, e um cubo vazado, formado apenas pelas suas doze arestas.
[5] Tradução a partir da edição inglesa: SARTRE, Jean-Paul. The Imaginary. New York: Routledge, 2004, p. 8 (1a ed. 1940) [Consider the example of a cube: I do not know it is a cube unless I have seen its six faces; I can possibly see three together, but never more (…) When, on the other hand, I think of a cube by a concrete concept, I think of its six sides and its eight angles at the same time…] Ver ainda MERLEAU-PONTY, Maurice. “Le cinéma et la nouvelle psycholo- gie”, conferência proferida em 1945, publicada em Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p. 91. No âmbito da crítica de arte, o mesmo conceito encontra-se em KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 22.
[6] SARDO, Delfim. Blefuscu – 6 pontos sobre o trabalho de José Bechara, texto incluído no livro Blefuscu.
[7] Quando a noite encosta na janela (entrevista de José Bechara a Glória Ferreira, incluída no livro Blefuscu).
[8] Texto incluído no livro Blefuscu.
[9] BECHARA, José. A casa – José Bechara. Rio de Janeiro: Barléu, 2006, p. 8.
[10] A comparação foi inspirada pelo texto/entrevista de Paulo Reis a José Bechara, “Deambulações acerca das qualidades” (em José Bechara – desenhos, como piscada de vaga-lume, Rio de Janeiro: Réptil, 2010, p. 223), em que o crítico sugere que a casa seja, para Bechara, o equi- valente ao que foi a montanha para o pintor francês, e ele admite: “é minha montanha, sim”.
[11] Marilyn Zeitlin, no texto Domicílio (Ir)Rompido, incluído neste livro, fala em “contraste entre ordem e caos” e em “ambivalência”.
[12] Nesse caso, uma passagem do texto de Fernando Cocchiarale, intitulado “Piscadas de vaga-lume, aventura em Oz e os desenhos de José Bechara”, que evidentemente inspirou também o título do livro citado: José Bechara – desenhos, como piscada de vaga-lume. Outro exemplo é a menção à ilha Blefuscu, que aparece no texto, também citado, de Delfim Sardo, e acabou fornecendo o título deste livro.