Conversa com José Bechara

Paulo Reis

Entrevista, Dardo Magazine, no. 7
Fevereiro – Maio 2008

 
 

Se a qualidade de um artista mede-se pelo esforço prometéico, José Bechara alcançou este status pela persistência, pela inteligência em transformar algo empírico em habilidade artística reconhecida. A verdadeira inteligência que se conhece as vezes pelas qualidades não aparentes. O escritor austríaco Robert Musil escreveu, em seu seminal livro O Homem sem qualidades, que “infelizmente não há nada mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor, a quem perguntaram como conseguia ter tantas idéias novas, respondeu: «pensando constantemente nelas». Com efeito, bem podemos dizer que as idéias inesperadas só nos vêm porque já estávamos à espera delas. São, em grande parte, o merecido fruto de um carácter, de certas inclinações estáveis, de uma ambição tenaz, de uma incansável actividade. Como é que uma tal perseverança pode deixar de ser enfadonha? Vista por outro prisma, a solução de um problema intelectual é mais ou menos semelhante ao que acontece quando um cão pretende passar por uma abertura estreita levando um pau na boca; volta a cabeça para a direita e para a esquerda até que o pau passa de lado; nós fazemos precisamente o mesmo, só com a diferença que não tentamos ao acaso, antes sabemos mais ou menos, por uma questão de hábito, como havemos de manobrar. E muito embora seja natural que uma cabeça bem recheada tenha mais habilidade e experiência para se mover do que uma cabeça vazia, nem por isso ela fica menos surpreendida quando consegue deslizar através da abertura; a coisa passa-se com rapidez e notamos nitidamente dentro de nós um certo espanto ao verificarmos que os pensamentos, em lugar de esperarem pelo seu autor, se fizeram sozinhos. À este sentimento de leve espanto, ou «intuição», depois lhe haverem chamado «inspiração», e julgam ver aí algo de super pessoal, quando se trata simplesmente de qualquer coisa de impessoal, ou seja a afinidade e a homogeneidade das próprias coisas que se encontram dentro de um cérebro…”

Pode-se descobrir muito do carácter de uma pessoa quando se discorda dela. Afinal, a discordância sincera implica no direito de defesa da emissão do seu antagonista como herança iluminista. Uma discordância leva-nos a pensar sobre as próprias limitações, a construir argumentos e desconstruir  axiologias, i.e buscar a verdade no fundo das próprias questões. Esta nota pequena introdução sobre o valor de uma discussão, faz-me lembrar um encontro com o artista José Bechara, há um par de anos atrás. Andando pelas ruas de Lisboa, o artista apresentou, em linhas gerais, seu novo projecto de construir escultura em grande escala que teria a forma de uma casa. Naquele momento, apresentei uma reacção contrária ao projecto, tendo questionado o porquê de um artista consolidado na pintura, com sucesso de crítica e mercado, tenha necessidade de radicalizar elaborando um projecto tão diverso de seu trabalho. Daquela conversa surgiram várias discussões sistemáticas sobre a obra em questão. Acompanhei todos os projectos iniciais, vi maquetas, vi a escultura num antigo armazém do cais do porto do Rio de Janeiro, vi a escultura ser criada, mostrada, e desdobrar-se em várias outras operações conceituais derivadas da forma inicial. Veni, Vidi, Vici.

PR: Vamos começar com o projecto Casa. Quando falastes-me dele, eu pus-me um pouco desconfiado, segundo suas palavras, eu o rejeitei. Naquele momento, pensava: como é que um artista que se firmou na pintura, tendo recebido o reconhecimento da crítica como o mais novo, fresco e importante pintor surgido nos anos noventa, estaria interessado em arriscar-se no terreno novo que era a escultura, num procedimento distinto do seu métier? Essa questão surgiu-me muito em conseqüência da crítica feita por Wilson Coutinho, nas páginas do Segundo Caderno d´ O Globo. Naquela crítica, ele o colocou como uma revelação, e depois disso tornastes o mais prestigiado pintor da sua geração. Essa questão teria me passado pela cabeça, pois sua entrada nas artes plásticas cariocas representou um certo frescor na pintura combalida pelos procedimentos expressionistas da geração anterior à sua. O seu procedimento invulgar no modus operandi de fazer pintura, sendo chamado de pintor sem pincel, tachado por alguns críticos de formalista e por outros que fazia uma pintura readymade. A verdade é que sua técnica de pintar – escolhendo lonas de caminhão, usadas, para mais tarde receberem matérias tão distintas como palha de aço-carbono e fogo para gerarem superfícies pictóricas que não dialogam com a tradição mais craft da pintura; mas contraditoriamente aproxima-se das rupturas das vanguardas históricas, já que mantinha a grelha modernista, ecos da sua admiracção pelos construtivistas europeus, sobretudo Malevich. Naquela altura pareceu-me mais um capricho ennui de um artista inquieto que “resolveu experimentar outro meio”, já que no da pintura estava devidamente entronado. Hoje, avalio as instalacções e objectos da série Casa como um algo valioso na sua trajectória artística e dobrei-me a sua perseverança, tendo inclusive usado algumas vezes estas obras em exposições em que fui curador, essencialmente nas mostras colectivas Casa – Poética do Espaço e Surrounding Matta-Clark. Antes devo admitir que não sinto o mesmo entusiasmo pela primeira vertente da casa, a do Faxinal das Artes, porque ali me parece um resultante impositivo artístico, condicionada a uma vivência. Ela tem mais de um Merzbau que um readymade modificado. Há algo de ilusionismo modernista, talvez uma ideologia funcional que me faz pensar sobre qual o propósito dela. Interesso-me sobretudo pelo módulos em grande escala e as pequenas esculturas portácteis, são para mim como uma boîte-en-valise de uma poética do espaço. Qual sua visão inicial desta passagem do planar para o espacial, sobre as referências contidas nestas experiências escultóricas?

JB: Em primeiro lugar tenho sim interesse especial pela experiência russa a que você se refere, sobretudo Malevich. Quanto à passagem do planar para o espacial, tal como você propõe, não houve qualquer estratégia para isso. Não planejei produzir experiências escultóricas embora já tivesse interesse em produzir trabalho fora do plano da pintura. A oportunidade para isso foi acidental, e surgiu durante o encontro-residência organizado por Agnaldo Farias em Faxinal do Céu, no Paraná, em 2002. Lá, enquanto perseguia um trabalho em pintura que parecia impossível tomar, fui surpreendido por um pensamento rápido formulado em três palavras: preencher os vazios. Imediatamente me dei conta de que podia realizar um trabalho a partir disso e que seria um trabalho mais desafiador e com uma correspondência mais poderosa com o pensamento que o motivava se fosse escultórico. Nas horas que se seguiram – eu passei toda a noite acordado trabalhando, pensei nalgumas possibilidades e conexões poéticas a partir das acções que se organizavam pela madrugada. Pensava nas relacções com minha pintura: a utilizacção de materiais estranhos ao meio, deslocamento de materais e objectos de seu espaço comum, grade construtiva e uma certa geometria que se esforça para não se desfazer, e tensões duma relacção entre informalismo e rigor formal. Além naturalmente de cruzamentos de ordem simbólica sobre tempo, memória, abandono, desamparo, finitude, “perdimento”.
Essas formulacções se deram a medida em que o trabalho prosseguia, primeiramente em Faxinal e depois nas instalacções no Paço Imperial, no Instituto Tomie Ohtake, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Museu de Arte Moderna de São Paulo, etc. O pensamento que tento elaborar a partir dessa experiência continua a enfrentar novas perspectivas com trabalhos como Ok,Ok Let’s Talk, que apresentei na Pinacoteca de São Paulo e na e mostra “Paralela”, em São Pauo, ambos em 2006, e que agora em Fevereiro apresentarei  no Museu Pátio-Herreriano, em Valladolid também em grande escala e mais recentemente na série Open House dedicada a esculturas de pequenas dimensões. Hoje, enquanto falamos, estou trabalhando num conjunto de novas pinturas, ainda com os mesmos materiais, mas com uma palheta mais aberta. Não sei se há um ganho ou perda, mas há mudanças na pintura decorrentes das relações com as experiências escultóricas.
Quanto às referências para as quais você chama a atenção: Schwitters e Matta-Clark nunca as tive como objecto de pesquisa para o trabalho A Casa e não havia me dado conta disso até que meu trabalho tivesse avançado em algumas direcções. É claro que hoje penso nas questões apresentadas por esses artistas e também Dennis Oppenheim, Hélio Oiticica e tantos outros. No caso do Merzbau acho que há maiores distâncias porque a casa, como objecto, ainda tem garantida sua “natureza”. No segundo, acho que há uma relação com o objecto, uma disfuncionalizacção do objecto, que me interessa mais. A Casa produz uma inversão de uso que a disfuncionaliza em tal ordem que só resta ao objecto a experiência poética. Não sei se em algum lugar respondi sua pergunta.

PR: Sim, respondeu. Mas falando em disfuncionalidade, lembro-me deste termo utilizado por Douglas Grimp sobre a operação do Duchamp. Para este autor, Duchamp não teve a intencionalidade pois ao fazer o readymade modificado ele toma algo existente no mundo, opera uma transformacção neste objecto e lhe aplica o valor artístico. Para Grimp somente o minimalismo opera a disfuncionalidade de algo funcional, já que os materiais continuam em seu estado bruto, reagrupados em outro sentido, indicando que sua função inicial não mais existe. Sua obra pictórica parte de uma taxonomia, na medida que precisas escolher os “acontecimentos” que lhe interessam na lona velha e gasta dos caminhões. Depois de seleccionada, cortada, recebe uma gama de materiais industriais que serão molhados, incinerado, apresssando sua decomposição para gerar uma outra matéria, esta impregada de memória, tempo. Sua pintura começa com o “olho e o espírito”, incorpora o acaso e termina numa singular pintura entre o informal e o formal, como salientas. Penso que toda arte hoje é herdeira do readymade, de certa forma. Sua pintura é um readymade modificado ou quanto existe nela uma operacção manual no sentido craft?

JB: Existe muito de craft. O que há de ready-made não basta, até porque não se trata disso. A lona usada de caminhão é uma superfície que reúne um determinado conjunto de ocorrências visuais, sinais e marcas diversos. Nisso reconheço uma qualidade que fundamentalmente me interessa. A partir daí, e com isso um conjunto de acções, procuro construir o espaço: cortes de secções de uma grande superfície, uso de materiais e combinacções químicas, cálculos, observação de vizinhança de cores, observação de pesos, processos de escolhas, uso de pincéis e outras ferramentas, repetições de processo, observação de tempo e clima, observação de temperatura de cor e, com certa relevância na sistemática da qual você afirma partir minha pintura, acidentes, muitos acidentes. A operacção de um “quadro” pode levar de 15 a 180 dias. Quanto à relação “disfuncionalização” x “poetização”, acho que há mais disso em A Casa, embora entenda que o uso da lona de caminhão, e principalmente o instante em que se dá a troca de uma lona nova por outra usada, contenha essa mesma matéria.

PR: Quando disse que a Casa é para mim como numa boîte-en-valise é porque percebo as diversas formas que encontrastes para tratar desta poética espacial, na medida em que ela pode tanto surgir como uma grande escultura, de uma fisicalidade imponente, maciça e precisa nos blocos minimalistas e tem nitidamente uma desenho a priori, por causa das especificidades de construção, que chamaríamos de engenharia, e as outras operações derivadas de sua poética, como as instalacções site específicas que fizestes no Brasil, “Área de serviço”, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, “Duas margaridas e uma aranha” no Tomie Ohtake, em São Paulo, e a instalacção ” Vespeiro” da Chocolataria Espaço de Intervenção, em Santiago de Compostela; e penso também no modelo do Ok, Ok, Let´s talk., já que também havia o condicionante do espaço. Estas construções dependem do espaço, é necessária a vivência deles para que um dos modelos desta operacção Casa funcione. Há uma nítida diferença entre os modelo escultórico casa, prêt-à-porter, que se pode montar em qualquer espaço generoso que suporte sua dimensão, e as operacções site específicas que parte das combinacções da Casa e são “rearranjadas” numa situação que o espaço preexistente é combinado na escultura, a qual chamemos de instalacção. E a terceira variante são as casas nos pequenos formatos, Open house, estruturas múltiplas que combinas escultura e pintura na medida em que as pinta ou oxida-as, numa soma ou subtração cromática, operando com sólidos cheios e sólidos vazios, como costumas chamar. Fale-nos sobre estes jogos visuais que parte de uma mesma estrutura e são abertas em infinitas combinacções, como uma caixa-valise das obras de José Bechara.

JB: Como já disse, eu não costumo dedicar muito tempo a um grande número de anotações e desenhos de projectos para realizar um trabalho. Então as operações propriamente é que vão apontando as direções e as possibilidades e tem sempre o erro e o acidente. A observacção de um buraco na parede duma casa desencadeou o primeiro trabalho no Paraná, que por sua vez informou instalações, depois A Casa, desenhos, as séries de fotografias e recentemente a série de trabalhos Open House. Acho que não foi o que você perguntou, mas eu queria dizer isso. Agora vou tentar responder-te. Minha primeira experiência com a escultura foi acidental e despreparada. Mas enquanto produzia o trabalho, lá em Faxinal, em 2002, fazia-me algumas perguntas sobre a presença daquele trabalho na paisagem local e com o que dessa paisagem o trabalho poderia contar, não só visualmente, mas também psicologicamente. Pensava na escala e na implicação que isso oferecia. Pensava nos vazios e na possibilidade de esculpi-los. Pensava na memória dos materiais, seus usos. Pensava em Supervielle “pondo trevas de pernas para o ar”. Pensava também no que era possível fazer em diferentes escalas de trabalho. Hoje, enquanto te respondo, me dou conta de como foi pra mim importante refletir sobre escala e dimensão dum trabalho. As instalações e esculturas de grandes dimensões tinham entre outras coisas, uma intenção de enfrentar o espaço real, confrontá-lo, dividí-lo e, mesmo que de uma perspectiva absurda, dar solidez aos vazios que se produzia a partir da instalação desses trabalhos. Com as esculturas pequenas, essas, da série Open House, aconteceu o mesmo. Eu achei que a minha relacção com a experiência escultórica precisava enfrentar outros problemas também espaciais. A escala reduzida me dá uma liberdade parecida com a que o desenho também me dá. Eu posso relacionar um número maior de matérias, introduzir outros elementos, como as grades vazias em algumas peças. Posso experimentar mais e errar muito mais ainda. Além disso, nessa escala reduzida, posso tomar todo o espaço ocupado pela peça ao mesmo tempo. Esses trabalhos menores, eu os produzo com o mesmo entusiasmo com que desenho.
PR: Sim, percebo o que queres dizer quando vejo que as obras da Open house criam possibilidades, quer formais, quer conceituais, de criar muitas combinacções. Há também a fotografia que no início serviu de registro para a instalação do Faxinal. Expostas depois como obras-registros, elas deixavam entrever uma certa fragilidade como meio, parece-me que não eram feitas com o sentido de uma fotografia e sim um registro de uma situação artística, complementar ao projecto inicial. Penso que inicialmente o propósito delas era de complementar um corpo expositivo de trabalhos. No futuro você foi elaborado mais a fotografia, conceituando as obras, ampliando as escalas, enfim, a fotografia passou a ter tanta importância quanto a escultura ou site específico, ganhando autonomia como obra. Hoje a sua idéia de Casa é randômica, abarcando diversos meios e suportes, mas girando em torno do conceito de espaço, mas para finalizar, achas que o modelo da Casa está a esgotar-se ou ainda percebe que poderia haver derivações ainda não experimentadas?

JB: Estou construindo uma vila, em escala real, que utiliza, em parte, a palheta de minha pintura recente, por sua vez emprestada da serie de esculturas Open House. É um trabalho mais dedicado a experiência de relações interpessoais e a certos dramas do indivíduo, mas ainda não tenho elementos pra me arriscar numa resposta longa.

 

 

Paulo Reis, curador e crítico de arte. Foi editor e diretor da revista Dardo. Foi diretor artístico da Casa d’Os Dias da Água, Lisboa; curador adjunto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e assessor cultural do Museu da República. Foi editor assistente do Jornal RioArtes, crítico de arte da revista Manchete, do Jornal do Brasil, da Folha de São Paulo, e redator da revista VivaMúsica!