BECHARA, DO CAOS À ORDEM
Luiz Armando Bagolin
Belo Horizonte, Brasil, 2024
Texto escrito para a exposição “Falar de longe”, de José Bechara na galeria Albuquerque Contemporânea, Belo Horizonte, 2024
No conto “O Som do Trovão” (1952) do escritor de ficção científica Ray Bradbury, quando o personagem principal pisa numa borboleta, este incidente gera resultados inesperados graves, incluindo a escalada ao poder de um líder fascista. O mote do conto é de que um pequeno detalhe, às vezes, inocente ou banal, basta para desencadear uma série de acontecimentos com consequências imprevisíveis. Em 1961, o meteorologista Edward Lorenz, trabalhando num modelo matemático para a previsão climática, constatou algo parecido. Ele viu que pequenas alterações (arredondamentos de decimais) nos dados inseridos no computador, tais como índices de temperatura, umidade e pressão, faziam com que os modelos oscilassem diversamente, se comportando fora do padrão esperado, à medida que os cálculos avançavam. A previsibilidade que sempre fora a base condicionante da física de Newton estava definitivamente comprometida. Lorenz nomeou o resultado de suas observações de Teoria do Caos.
Mas falar de previsibilidade em arte talvez seja algo estranho ou, pelo menos, inadequado, desde a falência das academias de Belas-Artes do século XIX (no Brasil). Houve também, depois, um breve tempo, durante a década de 1950, que se tentou, à sombra da arte cerebrina de Max Bill e das tentativas de aplicação por aqui da teoria da Gestalt, o soerguimento de uma arte construtiva puramente guiada por preceitos racionalistas. Foi o caso, por exemplo, do Concretismo proposto por Waldemar Cordeiro e seu grupo Ruptura. Passado este momento, no entanto, os projetos girando em torno da possibilidade de uma experiência construtiva na arte brasileira, partindo de intercorrências cuja base era a abstração geométrica, ganharam diversas possibilidades que tiveram em comum a exigência de participação ativa do espectador.
A origem do interesse de José Bechara pela construção geométrica remonta ao diálogo com este segundo momento (de Hélio Oiticica, Lygia Clark e outros), mas possui um desenvolvimento que o coloca numa situação diametralmente oposta. Como sabemos, para o Neoconcretismo, as experiências espirituais de Kandinsky, Mondrian ou Malevitch no campo da abstração, foram muito significativas na medida em que a pureza da formas geométricas básicas foram associadas à possibilidade de um ascetismo, de tornar o artista (ou o contemplador) “o sujeito puro do conhecimento”, conforme a expressão de Schopenhauer, lido por todos eles.
No entanto, Bechara não direciona o seu trabalho em pintura e escultura para este lugar, o de algum plano metafísico (ou catártico), cujo portal é a geometria euclidiana e as matemáticas que ordenam o mundo como algo certeiro. Ao contrário, ele não vê na geometria um índice de pureza ou perfeição, algo que aponte para a permanência de um padrão imutável ante o qual o artista é que deve se dobrar, a fim de alcançar a mais prístina pureza do Espírito.
A começar pela escolha de seu suporte, já impregnado, por assim dizer, de experiências do mundo, lonas usadas de caminhão (que o artista consegue pelo escambo por lonas novas) sobre as quais verte cobre ou ferro que vão se degradando, oxidando, tornando-se partícipes da matéria que os acolhe.
Bechara sobrepõe, como metáfora que se dá pari passu às transformações alquímicas que realiza, a sua atitude como um artista inquieto, que viaja para diversos lugares do mundo para os quais o seu trabalho o leva, às experiências de viagens anônimas, cujos vestígios se estampam nas lonas desgastadas e sujas que ele obtém com a negociação com os caminhoneiros.
As intervenções que ele provoca sobre essas lonas são guiadas por faixas ordenadas longitudinalmente (horizontais ou verticais), deixando entrever nas nesgas entre elas, partes do suporte com a sua imprimatura já selada, feita pelo vento, chuva, terra e poluição. O resultado é o de alguma aparição, como se as estruturas que surgiam das faixas, reforçadas por camadas e camadas de cor, estivessem nascendo de um conflito violento no seio da matéria. É este sentido, o da aparição, após um processo, às vezes, longo, de geração e formação, que impregna as formas geométricas elementares, no entanto, imperfeitas, como a dos planetas, luas e astros cosmológicos, que interessa ao artista. A obra surge, assim, a partir do acidente e das consequências a partir de decisões ou direções tomadas no ateliê, com resultados muitas vezes imprevisíveis.
Para Bechara, as geometrias são efeitos resultantes deste processo de intervenção material no mundo, nas coisas, e não pontos de partida ordenadores que inferem um status quo para a obra, antes que a mesma se realize (ou que advenha a partir daquele conflito).
A ideia de que o uso das lonas usadas poderia associá-lo ao ready-made duchampiano também não procede, uma vez, que o artista se sente ligado afetivamente a estes materiais, já repletos de acidentes, e que confirmam o seu interesse pela arte como posse de algo em contínua transformação. É como se em algum momento da vida daquele material, fosse feito um corte transversal representado pela ação do artista, que passa a ser agregada como mais uma experiência que se soma às anteriores, e que, talvez, algum dia, seja encoberta por outras intervenções, de outras naturezas. Bechara não se baseia, como Duchamp, na indiferença visual como um critério para a escolha de objetos sobre os quais irá intervir. Para ele, mais do que a noção de objeto achado ou coisa pronta, o que importa é a percepção do tempo, como algo que permite pensar a geração e a corrupção das coisas e dos seres.
O espaço tal como o concebemos não é senão um dos efeitos do tempo, o registro ou marca que ele opera num instante determinado, transformado em lugar. Por isso, as suas pinturas não se fixam como coisas acabadas, após serem concluídas. Elas servem antes de senhas para que possamos visualizar a ação do tempo sobre elas e sobre nós, assim como o registro desta ação num determinado espaço, preenchido provisoriamente (vivenciado num átimo).
Em suas esculturas se dá algo semelhante: _ Bechara, lança a figura do cubo como se fosse um dado, como o dos jogos, cujas viradas e piruetas deixam outros desenhos, como rastros no espaço, sendo transformados posteriormente em signos tridimensionais, ligados à forma de partida ou de chegada? O artista vê, assim, o espaço em torno do cubo como algo que o acompanha, fazendo as ligações com as forças invisíveis (que ele ou o processo tornava visíveis), atratoras e repulsoras e, que, por sua vez, desencadeam uma série de reações à sua volta. Não se trata mais, então, de entender a obra de arte como algo provocativo, que atrai a atenção ou mesmo a participação do espectador (fazendo vê-la, tocá-la, ouvi-la, cheirá-la), como as proposições do Neoconcretismo, porque a participação já está dada, como uma reação ativa, de perto, diante da obra, ou de longe (ainda que insuspeita), uma vez que a intervenção do artista desencadeia reverberações e interações que geram outras tantas intercorrências, sem que isso seja proposto por manifesto.
Talvez seja possível pensar na estratégia construtiva de Bechara à luz do poema de Mallarmé, “Um lance de dados jamais será abolirá o acaso” (Un coup de dés jamais n’abolira le hasard), experimental quanto ao campo ocupado pela letra, gramma, pelo som das palavras e pelas lacunas vazias, os espaços inocupados pelo texto. Ele os chamava de “subdivisões prismáticas”, que eram ativas (e não neutras), uma vez que impunham silenciosamente uma força de atração a palavras terminando com certas vogais, menos, com outras, fazendo da leitura do poema uma aventura sempre singular e irregular, a cada vez que se a reiniciava.
Semelhantemente, Bechara produz séries de trabalhos com oxidações que vão se modificando ao longo do tempo, justapondo um quadro ao lado do outro, mas deixando pequenos intervalos de parede que interferem, seja no campo de visão daquilo que está dentro da pintura, seja no que está ao lado, fazendo-nos tomar consciência também do espaço em que nos encontramos com a obra. À medida que nos movemos diante da parede, à frente dos quadros, estamos a participar da cadeia de ações que se iniciou muito antes, culminado com a sua instalação naquela parede e, depois, com a sucessiva sequência de acontecimentos que os levarão para algum destino incerto, mas do qual seremos sempre partícipes, sem o saber, como o homem que pisou na borboleta.
Luiz Armando Bagolin
julho de 2024