Marilyn Zeitlin
Phoenix, Arizona, EUA 2007
Em Blefuscu, publicado pela editora Dardo – ds, Espanha, 2008
Se artistas plásticos têm a capacidade de se sintonizarem com os indicadores sismográficos do Zeitgeist, então o que nos têm a dizer, nos dias de hoje, sobre a natureza do presente? Em uma época de mudanças tumultuadas, carregadas de violência, José Bechara nos oferece, de forma profética, proposições para responder a essa indagação. Sua expressividade é precisa para além da linguagem e impelida por objetos que, apesar de construídos como expressão pessoal, parecem articular os impulsos contraditórios que navegamos. Esse feito de Bechara se concretiza através de uma obra que tem desenvolvido nos últimos cinco anos, e que intitulou abrangentemente de A casa.
Bechara adota o vocabulário da arquitetura, mas sua obra é conceitual – não se trata de análise arquitetônica. Ele explora a forma no espaço enquanto investiga, simultaneamente, a função social da casa, forma mais recorrente da arquitetura primitiva à sofisticada, e toma o pulso do que ela desperta na psique e na memória. Não é que Bechara retrate a casa como um fim em si mesmo, ele simplesmente nos informa o que a casa não mais poderá ser. Ele evoca associação e memória pelo seu emprego da casa como forma, mas a ela sobrepõe uma camada de dúvida e desconforto ao criar uma casa inabitável e instável.
É sempre um relato apaixonante quando um artista plástico dá os primeiros passos em uma nova seara. O processo quase nunca envolve racionalizações ou talvez os processos da razão ocorram em níveis mais profundos, subterrâneos, de onde despontam já praticamente completos e acabados. Esse é o caso de Bechara e o de sua primeira escultura, A casa.
No Paraná, durante uma conferência de artistas e críticos, em 2002, Bechara foi equipado com todos os materiais que poderia desejar. Naquele momento, e até os últimos anos, o artista era conhecido quase que exclusivamente como pintor – de forma que eram quadros o que se esperava dele então. E eram quadros o que ele esperava de si mesmo. Mas nada aconteceu. Os dias se sucederam e continuaram em branco. Frustrado, de dentro da pequena casa que lhe fora cedida como alojamento e que compartilhava com a família durante o retiro, Bechara foi tomado repentinamente pelas possibilidades da própria casa do seu entorno. Peças de mobiliário se tornaram, sob seu olhar, sólidos prestes a serem encaixados nos vãos das janelas e portas. Arremessa um colchão, deixando-o atravessado na janela, boquiaberta com uma grossa língua protuberante. Mesas, cadeiras, sofás explodem através das aberturas das portas. Retirou a família de lá, transformou a casa na sua obra.
Segundo o crítico brasileiro Paulo Sergio Duarte, a obra escultórica de Bechara não constitui, na verdade, uma ruptura de sua longa trajetória como pintor, mas uma transmissão daquela para as três dimensões. “É uma espécie de monocromático praticado no espaço”1, diz o crítico. Tanto na pintura quanto na escultura, Bechara demonstra continuidade em relação à tradição na geometria que é uma das manifestações predominantes do modernismo no Brasil. Não é, porém, essa a impressão que fica da obra de Bechara, nem agora, nem no passado. Mesmo em relação às suas pinturas, é patente que ele enriquece a geometria com o elemento orgânico. Suas linhas são freqüentemente traçadas à mão, com contornos suaves.
Seu processo e os materiais que emprega registram a passagem do tempo. As referências narrativas e autobiográficas do trabalho de Bechara se codificam em um vocabulário que abarca a dimensão do sistema e da geometria, mas carece de fronteiras impostas por qualquer ortodoxia. Bechara incorpora evidências do acidental e do aleatório ao empregar lonas usadas que obtém de motoristas de caminhões em troca de lonas novas e, ao fazê-lo, introjeta a atividade do mundo fora-da-arte à sua prática estética. Ele trabalha cores e texturas intencionalmente ao permitir que o acúmulo de restos de metais oxidados interfira em suas telas.
Bechara às vezes usa peles de bovinos e, novamente, absorve marcas que fogem ao seu controle, apesar de escolhê-las e enquadrá-las incorporando, desta forma, criaturamente vida – e morte – à obra.
Agora, por meio da escultura testemunhamos as estratégias que Bechara demonstrou em pinturas transpostas ao plano tridimensional: embebido de espírito geométrico, mas não de modo a buscar a pureza, pelo contrário, o artista procura absorver a experiência para o plano puro da geometria. Bechara se associa a um dos movimentos da arte mais importantes do século XX, ao traçar sua continuidade com a geometria. Mas ele simultaneamente viola a pureza e os valores não-objetivos daquela tradição porque trata de experiência vivida em desalinho, sem regras – marcando o ponto vital, o gancho no qual significado pessoal e histórico se materializam.
De fato, Bechara se refere aos trabalhos de escultura como “experiências escultóricas.” A experiência é sua, claro, e, do mesmo modo, somos tomados pelo significado gerado pela obra cuja percepção passa pela mente e pelo tato, transformando-a em experiência nossa também. As experiências evocam a memória – pessoal e coletiva, particular e histórica.
José Bechara homenageia e “força”, simultaneamente, os limites e a tradição geométrica. Nesse aspecto, ele trilha um caminho paralelo ao de Hélio Oiticica2, e a semelhança não é meramente superficial. Oiticica ocupa um lugar no modernismo latino-americano comparável à presença e à influência exercidas por Joseph Beuys sobre a arte norte-americana e européia do século XX. Oiticica (1937-80) participou do movimento neoconcretista e nos deixou um rico legado de obras que investigam o poder da cor. Mas, como Bechara mais tarde, Oiticica tinha atração por objetos, os encontrados e os manufaturados, a combinação dos dois, e pela vida das ruas. As performances de Oiticica tiveram origem na Mangueira no Rio de Janeiro, de onde ele roubou a vitalidade e a fantasmagoria, o hedonismo dionisíaco do Carnaval, criando seus Parangolés, capas que são pinturas em movimento sobre o corpo de um bailarino. O que une os vários aspectos na carreira deste artista é sua obsessão pela cor. O que associa Oiticica a Bechara é a sua performance no espaço.
Bechara, mesmo como pintor, nunca criou obras geométricas canônicas. Quando explodiu a casa no Paraná, regurgitando móveis por todas suas aberturas, foi da pintura a uma exploração do espaço e da forma no espaço, “tanto formal quanto simbólico”3. Ele também abriu seu trabalho para associações mais ricas que jamais arriscara. Daquele momento até hoje, as três preocupações – geometria, arquitetura e associação com a experiência vivida – evoluem juntas.
No trabalho sobre a forma de casa, Bechara às vezes usa uma casa real, tal como o fez no Paraná. Mas aquela casa assume agora outra existência como um objeto geométrico, retendo algumas de suas funcionalidades transpostas para o mundo formal, e pela via da arquitetura torna-se garimpeiro de suas fontes de significado por associação.
Ao revirar a casa de dentro para fora, a mobília explodindo lentamente do interior para levitar em cascatas pelas suas aberturas, Bechara revela o que de outra forma estaria escondido, mantido em âmbito privado, até mesmo sob segredo. A casa, de 2004, exibida na mostra Panorama da Arte Brasileira 20054, mostra a relação entre a geometria e a experiência vivida.
No centro da peça há um cubo: feito de madeira compensada, sem adornos e apenas provisoriamente acabado. Móveis explodem como se uma força de dentro do cubo impelisse o conteúdo para fora por todos os orifícios. Uma mesa repousa sobre sua lateral, partes de uma cama e cadeira cuspidas, equilibradas sobre outro prisma retangular. Estantes parecem ter penetrado parede adentro do outro lado com outra mesa e um colchão empilhados sobre elas. Apesar de cada elemento ter sido colocado com o mesmo cuidado formal investido em qualquer exercício de composição, o impacto ainda é de espontaneidade – até mesmo de violência – imbuindo a forma de significado.
A casa expressa um forte contraste entre ordem e caos. Formalmente, o cubo é animado por diagonais e formas que surgem a partir do centro. Narrativamente, somos forçados a imaginar o que aconteceu no interior do cubo quebrando a sua pureza, o que ocorreu para revelar o detrito do dia-a-dia tão candidamente. Um psicólogo poderia sugerir que a obra mostra de uma só vez o exterior do eu e a turbulência da interioridade.
Bechara amadureceu revelando-se um artista com amor e respeito pela tradição geométrica que marca a arte brasileira. Mas percebo uma ambivalência na ruptura com a geometria expressa no uso de seus materiais de pintura, na perfuração da geometria para converter um cubo em uma casa, presente até mesmo em seus desenhos. Em um de seus desenhos sobre papel de arroz em que usa lápis e pigmento vermelho, Bechara adiciona linhas diagonais5 audaciosas. São pura expressão. O desenho, a meu ver, mostra que sua intenção mais profunda é destacar não apenas a geometria e a narrativa, mas fazê-lo com uma sinceridade emocional que freqüentemente está ausente, ou até mesmo reprimida, a serviço da ordem e da harmonia.
Em minha última visita ao ateliê de Bechara, ele estava desenvolvendo um plano estratégico para uma exposição para a rotunda da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ele me falou sobre a resistência ao óbvio, que seria usar as janelas e portas existentes para fazer mais uma de suas instalações sobre a casa. O ateliê estava repleto de mesas retangulares e as clássicas cadeiras de escritório. Ele estava pensando e desenvolvendo seu trabalho por meio do processo extenuante de arrastar essas cadeiras e mesas de um lado para o outro em seu ateliê. E, enquanto as movia, me explicava que a obra era sobre a impossibilidade de comunicação. Era sobre desentendimentos domésticos – ou qualquer gênero de comunicação frustrada – representados pela justaposição dessas mesas e cadeiras tão próximas que se tornavam desconfortáveis. Os tampos das mesas levemente inclinados de forma a sugerir certa turbulência. A obra Ok, ok, let’s talk6 (2006) preenche de mesas praticamente esgotando o espaço da sala octogonal. Mesas que quase se tocam, tornando o espaço claustrofóbico e intransponível. Duas cadeiras encaixadas nessa paisagem de mesas. Uma de frente para a outra, a uma distância desconfortável para uma conversa e dispostas em um arranjo de mesas que proíbe a possibilidade de aproximá-las. Mas elas não podem ser afastadas uma da outra. Bechara vê o trabalho como uma alegoria das relações nas quais as partes estão conectadas inexoravelmente, mas mantidas a certa distância, criando uma situação em que uma conversa é praticamente incapaz de amenizar.
Sem estar limitado ao âmbito do puramente geométrico, neste trabalho Bechara nos concede e entrega o conteúdo e inunda a nossa percepção de arte. Diante da arte assumimos quem somos, assim como o artista se expressa por meio dela. Ele abriu um novo caminho para si próprio, conectado ao presente e à nossa experiência assim como à sua própria.
Mesmo quando ele cria uma estrutura escultural usando algumas das formas e estratégias de construção de casas, a semelhança com uma casa está apenas em uma sugestão, de forma a nos sugar para seu interior, nos atraindo para que depositemos a nossa confiança. Ela nunca está completa, nunca totalmente acabada, não soa de todo certa, nunca confiável.
Ao romper a superfície que separa o interior do exterior, Bechara perfura a função protetora da casa, abrindo-a para uma invasão. Ao abri-la, a privacidade – algo tão importante para a nossa sensação de conforto e segurança – é violada; o doméstico irrompe, e o público – com um olhar que vasculha, avalia ou até mesmo aprecia – invade. Submetida à análise cuidadosa na qualidade de obra de arte, a casa se torna algo como corpos preservados e exibidos em museus mundo afora: a universalidade desses corpos e partes – nós todos temos essas partes – não as tornam menos fascinantes porque são comuns. É um tropismo do modernismo coisificá-los e então convertê-los ou deformá-los, transformando-os em objetos de arte, o centro da contemplação e reverência.
Bechara não limita sua análise das propriedades formais à casa como um todo, mas também a estende às suas partes e mobílias. Uma cadeira extirpada de sua função é uma forma complexa. Ainda assim nós jamais permitimos que seja esvaída de todo o seu significado funcional. Afinal, continua sempre uma cadeira, mesmo quando suspensa no ar, ou cuidadosamente em cantiléver de uma parede.
Bechara despe qualquer associação da casa com conforto. Esse é o ponto crucial para a resposta à minha indagação sobre o que está por vir agora. Ele proíbe que se entre na casa. Não se pode ir para casa de novo, porque a casa não é mais um refúgio. Não se pode trancar seus medos do lado de fora, não se pode contar com um paraíso doméstico, não resta quase nenhum indício de nossa identidade ali.
Essa visão de cada um de nós, de certa maneira tornados órfãos daquilo que nos é familiar, também se aplica à esfera pública. Países inteiros e, com certeza, cidades estão dando uma guinada em direção ao caos. Deslocamentos de grandes massas humanas migratórias tornam cidades perigosíssimas sob o crime e a insalubridade. Guerras, fome, secas e mudanças climáticas forçam populações a migrarem internacionalmente a um passo assustador. Essa transmigração, que por tanto tempo foi uma fonte de vitalidade para o comércio e na hibridização cultural, agora se acelera a um extremo tal que muito do que entendemos como mundo é um lugar onde o familiar foi suplantado por mudanças rápidas, pelo sofrimento humano e pela anomia.
Estar sem teto é mais do que simplesmente o fato de se ter perdido uma casa. Indica que até mesmo aqueles de nós que têm um lugar para viver podem não ter a segurança que a idéia de casa promete. O conceito de pátria ou homeland parece algo nostálgico e evoca um sentimento de nacionalismo desconfortável. Mas a idéia tem um poder tal que guerras são travadas para se criar uma pátria na qual se possa encontrar um terreno para se erguer uma casa. O mercado imobiliário é instável devido à especulação selvagem em países capitalistas e nas diversas arenas da guerra; o nacionalismo é usado para canalizar competições étnicas para confrontar as cicatrizes do colonialismo. As vítimas não são apenas os seres humanos, mas cidades inteiras que hoje estão sendo destruídas, e as pessoas que a chamavam de lar se tornam refugiadas.
Caminhar pelas ruas de centros urbanos hoje nos traz experiências interessantes e ao mesmo tempo um pouco assustadoras, e uma dessas é ouvir as pessoas falando em seus celulares, em uma gama tão variada de idiomas e, do meu ponto de vista, tão exóticas, que freqüentemente não consigo nem identificá-las. Bem ou mal, a globalização está entre nós, não há nada a fazer, e nos coloca constantemente em meio a estranhos.
Bechara arranca o conforto da segurança física que associamos às casas. Em seu trabalho, a casa tem paredes que não nos cercam completamente. A privacidade, ele sugere, é algo próximo do impossível em uma casa na qual as paredes não são contíguas. O interior é freqüentemente regurgitado e exposto no exterior. Materiais frágeis como papel de arroz montados sem firmeza se tornam apoio para um trabalho de grandes dimensões compostos de desenhos em papel de arroz.7
E ainda assim não há como evitar nossos anseios. Desejamos uma casa segura, dotada de privacidade, que reconforte o nosso espírito, que nos envolva com ar de família, que seja também um receptáculo das nossas lembranças de família. Ansiamos que ela seja – ouso dizer? – acolhedora, um cantinho doméstico ou, se for muito piegas, pelo menos um lugar no qual pessoas que amamos possam conviver.
Bechara eleva a tensão do que a casa evoca em nós e no produto de seu trabalho ao negar que o objeto de nossos anseios seja inacessível, impelindo-nos, com isso, ao esforço de preservar a nossa impressão da obra como algo de natureza arquitetônica e puramente escultórica. O trabalho é, a todo instante, arquitetura e escultura. Tal como a paralaxe que se observa ao fechar um olho para logo em seguida fechar o outro abrindo o primeiro, mudando o ângulo de visão. Em certos momentos a função escultórica domina. Em outros, o trabalho é claramente arquitetônico. Depende, digamos, de qual olho está aberto e qual está fechado.
Artistas que usam as formas da casa, permitindo que o observador entre e saia e saboreie a familiaridade, me lembram um evento de minha infância. Passei várias férias de verão em uma comunidade fora da cidade de Nova York, em uma casa que foi construída pelo meu avô com a ajuda de vários de seus filhos. Havia uma rua paralela à nossa com casas parecidas, mas por motivos que não consigo explicar, não havia ninguém morando nelas. Eu e alguns de meus primos mais velhos entramos sub-repticiamente nessas casas, examinamos os talheres na cozinha, sem uso há muitos anos, sentimos o cheiro acre dos colchões velhos. Fantasiávamos com a idéia de fugir ao controle das regras de nossos pais, que nos impunham limpeza e ambição, e tornávamos exploradores escondidos nesses casebres abandonados. Nunca mencionamos essas escapadelas aos nossos pais. Era um prazer voyeurístico estranhamente excitante.
Esse não é, porém, o modo como Bechara usa a casa. Ele nos força na direção oposta: para longe da familiaridade e da nostalgia. A sua casa é muito mais uma empreitada modernista, com uma narrativa adiada ou distanciada, ou até mesmo obliterada. A tensão das referências da casa com a forma pura vem primeiro, suas associações vêm depois e, ainda assim, de forma poderosa.
Quando Bechara fala sobre a casa e a riqueza das associações que ela traz, fala sobre as lembranças de seu avô preparando a comida para ele e seus primos, cortando os legumes em uma mesa antiga. A casa está repleta de lembranças domésticas já que é o recipiente para se viver. A casa é sinônimo de família. Proteção, identidade, expressão de quem somos ou queremos ser. Mas ele está atento ao fato de que a domesticidade que ele descreve pertence, para a maioria de nós, a uma outra época. Ao desconstruir a casa como uma estrutura ele também a está desconstruindo como uma idéia, sem gratificar as nossas fantasias de vida em família.
Há um encanto que nos atrai em casas que estão em ruínas. Uma casa em construção, no estágio em que seus alicerces estão localizados como um desenho pontilhado, sugere os espaços preenchidos e vazios que estão por vir. E ainda assim, a ausência de paredes ou reboco torna a casa permeável. Podemos atravessar as paredes para passar de uma sala para a outra sem a necessidade de usar as portas. Temporariamente, somos dotados de poderes supernaturais.
Diferentemente de artistas cujo trabalho sobre a temática da casa evoca uma aproximação ao universo familiar, Bechara parece estar muito mais próximo de Gordon Matta-Clark, cujo trabalho nos impele a um estranhamento do familiar ao submeter a casa a um processo analítico, cortando e desnudando o que fervilha sob a superfície.8 Ao cortar a parede, ele revela a história da construção, as camadas de tinta, de reboco, a infra-estrutura da fiação e o encanamento. Testemunhamos seus segredos, tão cuidadosamente escondidos, pela superfície das paredes. Bechara e Matta-Clark criam, ao mesmo tempo, algo misterioso na casa, algo como deitar na cama e olhar o teto pensando nele como se fosse o chão, o que torna tudo novo e, de certa forma, aterrorizante.
Basta cortar a casa, que ela se torna um objeto de arte. E o mesmo se aplica aos seus componentes. Ao isolar um de seus aspectos – um canto cortado em uma fatia e colocado no chão – o familiar se deixa eclipsar pela dinâmica da forma. A escala dos materiais e elementos se torna, repentinamente, nova e intrigante visualmente.
A conexão com Matta-Clark pode também ser uma conexão com Oiticica. Este foi para Nova York no início dos anos 70, em um período em que Matta-Clark estava realizando trabalhos célebres como Splitting (1974).9 Provavelmente Oiticica sabia da produção de Matta-Clark, que era uma figura catalisadora na comunidade artística, transformando, por exemplo, um restaurante no Soho em uma obra de arte, uma escultura social no sentido de Beuys. De forma que é possível conjeturar que algo do impacto de Matta-Clark viajou para o Brasil com Oiticica, ao retornar ao Rio.
Não é apenas na obra de Bechara que a casa toma o lugar do corpo. É uma metáfora que tem raízes bíblicas e por toda a história da poesia. Bechara nos provoca não apenas porque a solidez da casa foi desmanchada, mas porque sentimos o frisson da vulnerabilidade do próprio corpo. O corpo é um receptáculo de nervos/fiações e sistemas circulatório/encanamentos. Ambos estão cobertos por uma pele fina, que pode ser penetrada sem dificuldades. Splitting e as casas cortadas de Bechara unem a casa ao corpo. Como se o artista tomasse o lugar do cirurgião, realizando operações e amputações para estudar os níveis mais profundos da forma e do significado.
Outro artista brasileiro que avançou com o geométrico, unindo-o com a experiência atual, é Raul Mourão.10 À primeira vista o trabalho de Raul parece severo e minimalista. Em um segundo momento, quando se percebe que as formas de metal lineares fazem alusão às barras que fixam janelas e portas das casas, é que se percebe que o trabalho é narrativo ao mesmo tempo em que é pura geometria. Utilizando uma linguagem visual sutil, Raul Mourão nos remete à incipiente vulnerabilidade e violação de privacidade e segurança que está transformando a experiência urbana.
Mourão, que é amigo de Bechara, pode também tomar a abstração linear das demarcações de um campo de futebol e criar objetos avançados a partir desta informação. Seu trabalho vai do sinistro ao espirituoso, com freqüência as duas coisas ao mesmo tempo. Bechara e Mourão sugerem um corpo – presente pela sua ausência – seja por meio de uma casa abandonada pelo sistema de segurança e por aqueles que vivem divididos por ele.11
As estruturas das casas de Bechara sugerem movimento, não uma forma estática. Não estão aprumadas. Foram criadas para sugerir instabilidades. Elas são parentes avançadas da figura mitológica russa que aterroriza as crianças, a Baba Yaga, uma casa viva com pernas de galinha que chocalha colheres à medida que anda.
Os trabalhos em grande escala carregam agouro. As instalações ponderam a estabilidade do cubo com a força centrífuga dos elementos que emanam de suas aberturas. Em seu trabalho mais recente, Bechara diminui as escalas e expande a sua exploração com os trabalhos da série Open house. Recentemente ele mostrou estas instalações com grandes ampliações fotográficas, em uma exposição chamada “Geométrica”. O título é centrado em como pensamos sobre aspectos formais desde o princípio, sobre a objetificação e a relação com geometria. Em Open house, ele faz experiências com uma escala menor, realizando trabalhos naquilo que poderíamos chamar de escala doméstica – o que é irônico, uma vez que o significado do trabalho parece depender grandemente do fato de abandonarmos a fé na domesticidade. E ainda assim vivemos em casas, por mais condenada que seja esta noção, e estes trabalhos passam a ser arte.
A relevância social se coloca agora como pano de fundo, se torna um subtexto muito mais sutil. Os trabalhos são mais complexos e menos categóricos do que as instalações, não apenas pelas suas dimensões mais reduzidas, mas porque o artista parece baixar a guarda e se permitir ser mais seletivo no seu amplo vocabulário de estratégias.
Em Duas cabeças com vermelho (2006),12 ele associa o esqueleto da forma de um cubo com a de um cubo sólido. Invariavelmente esse esqueleto está distorcido, levantado por um lado, como a sombra da forma sólida. O pas de deux entre eles nos provoca. São trabalhos, em alguns casos, que retêm a qualidade pressagiadora dos trabalhos em escala de instalações. BlackBlack é um desses trabalhos, que se torna mais severo devido a seu monocromatismo. Este e outros da série são primos próximos da escultura minimalista. Mas nenhum está completamente desprovido da sugestão de uma narrativa. Até mesmo BlackBlack possui extensões que se tornam rampas ou saídas de emergência.
O que vem em mente ao olhar esses trabalhos é um relicário ou tabernáculo. Essas também são formas que não podemos adentrar, não por motivos artísticos conceituais, mas porque elas contêm uma relíquia ou um texto sagrado proibido de ser visto. Dessa forma, na qualidade de uma existência que não pode ser testemunhada jamais, tornam-se, portanto, puramente conceituais.
Mais uma vez o paralelo com Matta-Clark se torna evidente na atração pela idéia de realizar trabalhos que cabem em uma galeria. Os objetos que Matta-Clark criou ao cortar os cantos das casas em Splitting para criar objetos13 de dimensões que cabem em uma galeria sugerem a descoberta de novos objetos. Bechara parece estar fazendo algo muito parecido ao atrair as suas próprias casas para o interior das galerias.
Bechara também produziu belíssimas fotografias dos trabalhos da casa desde o início. Ao criar a relação entre os objetos e as fotografias, ele também lembra Matta-Clark, e por motivos semelhantes: a casa e as instalações de grande escala são, pela sua própria natureza, impermanentes. Mas, além do motivo de preservação, as fotografias do artista são trabalhos independentes, trabalhos bidimensionais, composições de formas extraídas de objetos tridimensionais. Talvez essas fotografias nos levem de volta para o início, para o Bechara-pintor, e, como ele sugere, para a geometria.
A relação entre as grandes instalações, as menores e as fotografias que estão além da mera documentação e se tornam obras de arte nos remete à produção de Dennis Oppenheim. Mas a conexão mais profunda é a mais fundamental: tanto Bechara quanto Oppenheim usam precedentes formais como um trampolim para suas pesquisas mais pessoais. Ambos iniciaram suas carreiras com trabalhos adstringentes, minimalistas, e posteriormente se moveram para sair dessa base rigorosa ou até mesmo, no caso de Oppenheim, à sua paródia. 14
Ambos expandiram o uso de formas arquitetônicas de uma variedade de fontes iconográficas para tecer comentários sobre nossa condição social, histórica e pessoal. Ambos baseiam o conteúdo e o significado narrativo em tradições, redefinindo parâmetros dessas tradições e criando novas formas de propor a arte como uma prática que nos impele constantemente ao território desconhecido.
Inevitavelmente, uma obra de arte é vista por meio dos filtros do nosso tempo e da nossa própria experiência. O significado está sujeito aos seus arredores. Assim como um escritor vê a obra não apenas como ela funciona, não apenas no momento de sua concepção, mas também no tempo presente. O que estou lendo ou o que está no noticiário condiciona a minha reação ao trabalho sobre o qual estou escrevendo. Assim, as formas das casas de Bechara me dizem algo sobre o noticiário e o noticiário interfere no entendimento de sua obra.
A vulnerabilidade do corpo que é sugerida, de forma tangencial, na obra de Bechara me lembra um trabalho de Caetano Dias, Cristo de rapadura, mostrado como parte da Paralela 2004, uma exposição organizada por marchands de São Paulo para expandir o conteúdo da Bienal de São Paulo. O trabalho é uma representação figurativa em tamanho real, do Cristo reclinado, feito de açúcar mascavo. O trabalho convida as pessoas a quebrarem um pedaço e comê-lo, em uma espécie de comunhão. É uma expressão muito mais literal da vulnerabilidade do corpo do que qualquer coisa que Bechara faria. Mas na apresentação do fragmentário, em seu duplo significado de morte e desintegração, ele também promete algo além do próprio objeto, além da associação com o corpo. Bechara jamais seria tão otimista, acredito. Mas a transformação da familiaridade da casa em pura forma é, em certo sentido, a sua própria apoteose.
Notas
- Paulo Sergio Duarte. “This house of Bechara’s”. Em José Bechara. A casa. Foto de Vicente de Mello. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006, p. 31- 32.
- Mari Carmen Ramirez. Hélio Oiticica: the body of color. Houston, Texas: The Museum of Fine Arts Houston, 2007.
- De uma comunicação do artista em 16 de junho de 2007.
- Panorama da Arte Brasileira 2005. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2006, p. 14-16 e 23.
- José Bechara. A casa. Op. cit., p. 52-53.
- José Bechara, Ok ok let’s talk, 2006. Mesas, cadeiras, dimensões variáveis. Projeto Octógono de Arte Contemporânea, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
- José Bechara, Quick notebooks (Cadernos rápidos), 1999. Oxidação de carbono e aço sobre papéis, dimensões variáveis. Coleção do artista, Rio de Janeiro.
- Elizabeth Sussman (ed.). Gordon Matta-Clark: you are the measure. Nova York-New Haven: Whitney Museum of American Art-Yale University Press, 2007.
- Splitting está documentada em uma série de fotografias datada de 1974-1975.
- Raul Mourão. Rio de Janeiro: Casa de Palavra Produção Editorial, 2007.
- Uma vez visitei o ateliê de um artista, situado em uma bela casa modernista nas montanhas nos arredores do Rio. Com vista para a Lagoa e para Copacabana, em meio ao verde tropical. Cercada por grades de ferro, câmaras eletrônicas e cães de guarda. É um lugar seguro, com estas precauções, para uso como um estúdio, mas não se pode morar lá porque não se pode garantir a segurança à noite. Sujeita ao abandono, a casa está se desintegrando por falta de quem more nela.
- Duas cabeças com vermelho (2006), 1/2, da série Open house. MDF oxidado e óleo, dimensões variáveis aproximadamente 50 x 50 x 90 cm. Coleção Ana Luisa e Mariano Marcondes Ferraz, cortesia de Lurixs Gallery, Rio de Janeiro.
- Elizabeth Sussman (ed.). Op. cit., p. 112-113.
- Germano Celant. Dennis Oppenheim: explorations. Milão: Ediciones Charta, 2001.
Marilyn A. Zeitlin, diretora do Museu de Arte da Arizona State University (ASU) e Curadora Chefe. Formada em literatura comparada, obteve mestrado em inglês pela Universidade de Harvard, e pesquisa arte pré-colombiana, moderna e contemporânea, além de ter feito o China Program da Universidade de Cornell.