Wilson Coutinho
Rio de Janeiro, Brasil
No catálogo “José Bechara”, publicado para a exposição Comendo Margaridas realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil, 1998
O que significa ainda isto: o pintor pintar? Um dos mais surpreendentes eventos deste final do século – ou ao menos para o que se convencionou chamar de década de 90 – é que um pintor tenha continuado a pintar. A obra de José Bechara surpreendeu a partir de 1997, quando expôs numa galeria carioca. Era impacto, forte, até mesmo rude. Esse frescor de primavera na pintura, mas também o rompante de ventos fortes, rudeza, aridez e beleza estavam calçados em grandes superfícies, que parecia metabolizar muito do que acontecera na arte brasileira dos anos 70 até ele. Há um núcleo conceitual, que se desfaz para um informalismo e deste para uma grade construtiva. Tudo isto meio solto e meio preso a uma forte tensão da matéria, pouco vista na recente arte brasileira, de Iberê aos últimos quadros de Jorge Guinle Filho. Além disto, havia um método que, no caso de José Bechara, não pode ser visto como separado de sua pintura. Método e finalidade são para ele uma coisa só. Agora, Bechara foi convidado pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para cumprir um desafio. O de ocupar o vasto pé-direito do museu, um lugar onde muita pintura tende a definhar, devido à escala do espaço. Por mais de um ano trabalhando num ateliê em São Cristóvão (uma desativada fábrica), hoje sincopada pelo trabalho de um outro artista, cães vadios, um pedaço de um carro alegórico de carnaval, um certo silêncio modorrento sob o sol, que se esbate sobre detritos, coisas jogadas fora e lixo industrial, Bechara preparou superfícies imensas (4 x 5m), oxidadas, com a única tarefa de trabalhar o local que lhe foi oferecido. Pode-se dizer que, sem abandonar o Espaço da Pintura, Bechara tende a fazer algo que o supere pelo fato de que é o local que deve ser posto em questão.
Isto significa, simplesmente, que o pintor não parte do fato de pôr “janelas”, quadros pintados, na parede. Nem mesmo, ele propõe – como muitos outros artistas já tentaram – uma instalação para envolver e resolver as dificuldades daquele complexo espaço. Os recursos de Bechara, comparados aos das instalações, são até bem mínimos: superfícies pintadas, ou seja, um conjunto de Planos, que possam sensibilizar de forma ótica o espectador. São obras, portanto, de ação e estratégia. Ação sobre o espaço e energia estratégica para colocar aquele local num fluxo de atenção estética, que esteja em confronto com aquela dimensão que soa como uma fenda, um abismo, uma espiral devoradora. É um combate contra o Muro. Não que isto seja um problema que os artistas, volta e meia, não sejam obrigados a enfrentar. O Muro é uma coisa que fecha, que circunda e que impede. A primeira ação sobre o Muro (além, é claro, das pinturas primitivas das cavernas) é torná-lo cena, o que os afrescos dos muralistas tratam de organizar. Cena contra o silêncio do Muro, tais artistas, numa escala muito grande de tempo, trabalharam de diversos modos até chegarem os artistas contemporâneos que destroem após a exposição as obras que afixaram nele, supondo que elas entraram naquele espaço só para ocupá-lo por instantes, feitos só para aquele local. Desse modo, não há sentido nem em mantê-las ali depois do evento artístico, nem em removê-las para outro lugar museológico, ou mesmo deixá-las à venda numa galeria.
Este ano, em outro museu, o MAC de Niterói, o artista brasileiro Antonio Manuel resolveu atuar sobre o impedimento do Muro. É verdade que não quebrou as paredes do museu, mas sugeriu que isto seria possível, ou melhor, é possível pensar e sonhar com isto. Sem querer discutir a sociologia da destruição dos museus, uma ideologia do começo do século, penso que Antonio Manuel convenceu-se de que o enfrentamento com o Muro era algo da história da arte desde os tempos imemoriais. Ergueu um muro dentro do museu – e o quebrou a golpes de picareta(1). O enfretamento de Bechara, é lógico, é bem diferente. Até onde eu sei, ele não foi um artista – como minha geração viveu e cresceu – com matrícula na Antiarte que, a meu ver, lhe parece algo indiferente, embora seu trabalho utilize determinados elementos desse movimento histórico. Bechara, de outra geração, faz primordialmente pintura. Bem que sua pintura sobreviva como um além sobre ela, até porque ele não pinta com pincéis e tintas; Bechara usa água, tufos e esponjas de aço-carbono, fogo e lonas usadas de caminhoneiros. E esta não é uma tela branca. Ela já é uma estrutura, uma “paleta”, um “pictórico” que o acaso, o tempo e a necessidade em remeterem para o artista como algo que já foi pintado. É uma pintura que a partir daí Bechara fará evocando eventos temporais numa mesma seqüência. Além disso, creio que ele não pinta sobre as lonas – elas são um fato pictórico entrelaçado ao que ele depois executará “sobre” elas. As obras que Bechara, com razão, chama de “matéricas”, expostas no MAM e feitas para aquele específico local do museu, são, de fato, um evento que se poderia chamar de “momento glorioso e dramático da matéria”.
As grandes peças são carregadas de nervos, texturas, volumes, massa decomposta pela ação da água sobre as esponjas, deterioração e infusão, medida e desmedida, vida e morte do orgânico, peso e densidade. Principalmente nesta “ocupação” do MAM, peso e densidade estão na superfície e não em algo pesado como uma escultura. Peso e densidade se espalham sobre a superfície supostamente lisa e estendida. Depois, ela parece modelada pela matéria, como se vê nos blocos de massa que o artista organiza nas lonas. O confronto de Bechara com a historicidade do Muro (“é possível destruí-lo”, sugere o trabalho de Antonio Manuel no MAC) é o de ofuscá-lo e não temê-lo. Ofusca-se pela cena como nos afrescos, murais e obras minimalistas abstratas. Ou seja, por dinamizá-lo. Ofuscá-lo quer dizer aqui tornar o lado do Muro sem ação, absolutamente neutro, para a afirmação de sua “pictórica”. É distanciá-lo o bastante até se excluir. O que sobra? No caso de Bechara é esta efervescência de matérias, esses pesos densos. Além de tudo, há uma “paleta” – marrons, vermelhos, negros, cinzas –, decomposições de outras matérias.
O que há aqui é uma cena a ser dinamizada. A cena é feita pela obra em presença e não por uma camuflagem do Muro. É permitido pensar que há uma poética e mesmo um vínculo ontológico com o mundo nisto tudo que vemos. O Muro, que é limite e proteção ao mesmo tempo, se torna um aquém. É que através da densidade da pintura, podemos ultrapassá-lo, mesmo estando diante de um pé-direito de um museu. O outro lado que a pintura aponta, com sua rude eloqüência e seu frescor pictórico, é esta cosmologia de matérias que nos faz saltar do imediato, este que nós ainda estamos vendo, e que se prolonga para um Cosmo muito além de nós. Aquele que, de certo, está fora dos Muros.
1. Eu não vi a manifestação do artista no MAC. O que narro é o relato oral e o da imprensa na época da mostra de Antonio Manuel de Barrio no Museu;
O Resto como Beleza – O método
Lévi-Strauss observou que a sociedade se movia por meio de três tipos de troca: a da mercadoria, a de mulheres e a simbólica, esta especialmente feita pela linguagem. O trabalho de José Bechara tem o seu ponto de partida em dois modelos de troca, visto pelo antropólogo francês, como condições fundadoras da vida social. O que chama atenção, porém, é que as duas trocas – a da mercadoria e a simbólica – que movem o início do trabalho de Bechara não se utilizam de nenhuma base antropológica, nem seu trabalho encontra um motivo sério para realizar uma mediação junto da antropologia. O gesto que move é amparado pelo o que Pierre Bourdieu chama de campo da arte, onde se insinuará uma estética. É desta maneira, por exemplo, que seu trabalho não participa de nenhuma etologia da vida urbana (não é uma sócio-arte), nem o artista pressupõe, ao trocar encerados novos que ele compra para trocar com outros velhos, que cobrem os caminhões, estes cinzentos, rasurados, empoeirados, que ele está desconstruindo o processo de troca (no caso de um artista conceitual, por exemplo). Nem mesmo Bechara está parodiando o processo de trocas de mercadorias (um pós-modernista irônico). Bechara, com o elemento de troca, não faz nem obras conceituais nem instalações. Bechara não faz um julgamento fora da arte sobre o valor de troca. Se existe economia, ela não é nem conceito, nem paródia, mas o da velha escola escocesa: as lonas são produtos de mercado, que interessa a ambas as partes em jogo, devido ao lucro.
No caso, Bechara é simples. Há algo que muda. É um péssimo negócio trocar encerados novos por velhos, a não ser que o seu uso tenha uma outra significação. É, então, que o artista impõe um valor, alheio ao que significa uma transação comercial. É este gesto estético que muda as coisas, que corrói o valor daquelas mercadorias, que produz uma superabundância de valor, cuja economia é, à primeira vista, invisível. É óbvio que outro mercado está à espera – o de bens simbólicos, que sufraga esta função comercial dando-lhe outro sentido. Mas o que pesa nas trocas de encerado é o valor estético imposto na escolha do artista. Ou, como Bechara diz: “É meu olho que escolhe”. Quem escolhe assim, não esta escolhendo um ready-made. Portanto, o que atuará junto com a troca é o fator simbólico (estético), no qual o artista impõe uma decisão alheia ao valor específico das leis do mercado de encerados(2). Por que, podemos perguntar, há uma superabundância de valor? É que as lonas velhas perdem sua utilidade de mercadoria funcional, cuja lógica é a de proteger mercadorias úteis para o comércio natural. Não é que elas percam utilidade econômica, porque outro mercado as espera, pagando muito mais por aquelas lonas. Mas esse primeiro ato da estética de Bechara é, evidentemente, desinteressado e nem o artista ao fazê-lo, ao menos na sua primeira vez, poderia ter certeza, de que faria uma outra mercadoria.
Esse ato estético – e é nada mais do que isto – mantém uma distância e uma diferença das normas das telas. Geralmente são peças de linho, nas quais se monta um chassi e, no vazio deste branco, pinta-se. Elas podem ser, como de linho, neutras. No caso de Bechara as lonas já são evento da Pintura cheias de acaso e tempo, cinzentas, rasuradas, remendadas, gastas até o último fio da utilidade, transformando-se para o artista em suporte, mas um suporte já pintado pelas ocasiões do tempo e do acaso, preenchido pela força da escolha. Bechara seleciona manchas que são corrosões do tempo e, a partir desta pátina que vem do comércio e da necessidade, ele libera um grau novo de força e liberdade. Como disse, nada a ver com os ready-mades. As lonas são escolhidas com excesso subjetivo no seu julgamento estético e sem definição no objetivo comércio e indústria de encerados. Lonas que, de fato, agradam a percepção do artista, e que servirão de base e objeto de suas obras.
De certa maneira, há um “informalismo” que não atua por meio da gestualidade inconsciente do artista, mas que trabalha com a ambígua relação de controle e descontrole do material.
O tempo faz o seu inevitável trabalho informal nas coisas, cria sua rede de texturas, algumas delas classificáveis por técnicas usuais de manutenção (os remendos, por exemplo) e não dispostos, é lógico, em lugares pré-organizados. É o artista, porém, quem escolhe os cortes de que necessita, as manchas que considera desejáveis, riscos e colorações mais aptas à sua conveniência poética. O valor da mercadoria passa a ser apenas um resquício da troca.
O método de Bechara começa sobre a ação do tempo sobre um valor da mercadoria – e este método é a sua invenção. O arranjo do tempo sobre estas lonas, superfícies planares já impressas, das quais ele fará irromper a larva incandescente do material destilado e apodrecido. Ação corrosiva feita pela maceração de palhas de aço sobre as lonas, que a oxida. É assim sobre uma impressão na superfície, cujo tempo imprimiu suas marcas, que o artista desenvolverá a continuidade do seu trabalho. É como se esse silk-screen extraído do tempo tivesse a sua durée bergsoniana. Durée esta que quer se incrustar na matéria e não, a rigor, na memória involuntária. Neste sentido, a superfície de Bechara é uma matéria involuntária, sobre a qual as intuições poéticas do artista darão curso às suas opções.
Isto não é tudo. Embora muitos trabalhos de Bechara pudessem apenas utilizar as lonas como matéria e suporte (um ready-made desviante), eles são organizados pelo artista, de modo que algumas obras pressupõem uma ordenação que sugere uma atmosfera construtiva. Outros trabalhos, mais “informais”, maceração das palhas sobre a superfície em rasuras, criam uma matéria densa, industrialmente orgânica, cuja cor deriva da dissolução química do aço com água. A maceração gera crostas, súbitos empastamentos, tessituras, volumes. Eis então uma paleta industrial, que se recusa a ser veículo da indústria, paleta involuntária, cujos efeitos cromáticos – os da oxidação – não estão bem na lógica da química pictórica.
O trabalho de Bechara, a meu ver, joga com uma série de modelos e sistemas utilizados nos últimos trinta anos de pintura, mas criando as suas próprias regras, algumas inesperadas. Para o exterior, esta pintura que não usa o óleo nem o acrílico evoca uma dissolução temporal. O tempo que corrói, animado pelo uso das lonas dos caminhoneiros e pela destruição do aço-carbono, regado pelas águas, que deixam as marcas de sua dissolução. Para o interior, é uma conquista de uma superfície que foi determinada pela mutação física deste produto industrial. Em certo sentido, muitas das peças de Bechara podem lembrar as matérias de um informalismo revigorado.
Uma ida ao ateliê do artista supera esta definição. Embora Bechara não possa controlar todo o processo químico das esponjas, ele ordena as suas camadas de modo a extrair efeitos possíveis de serem avaliados com alguma precisão. Só em nosso tempo, em que a pintura procura se realimentar de novos processos para, de novo, conquistar seu espaço simbólico e imaginário, os trabalhos de Bechara confundem-se com o seu método e o seu método extrai poesia do processo inventado. Assim, nessas telas imensas, onde uma estranha matéria pulsa sobre a superfície, o pintor só pode representar o acolhimento do seu método. No caso de Bechara, a força que impulsiona uma beleza em resto.
(1) Com o título “O resto como beleza”, este texto foi publicado primeiramente no jornal RioArtes, edição de 1996, número 2-2. Como se trata do método de Bechara, que não mudou neste período, ele é republicado aqui, apenas com pequenos cortes e poucas modificações.
(2) Existe, na verdade, um mercadejar um pouco maluco. Um caminhoneiro pode trazer uma peça velha rota e ser comprada. E outra, com menos marca do tempo, recusada, o que imagino deve encantar e tornar quase mágico este comércio, no qual é um olho estético que impera.
Wilson Coutinho, mestre em filosofia por Louvain, Bélgica. Foi crítico de arte d’O Globo, jornalista, professor e curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.