José Bechara

Agnaldo Farias

Rio de Janeiro, Brasil, 2013.
Em José Bechara, publicado por Editora Barléu.

 
 

MARGARIDA STRIPE [2008]

Essa pintura tem as medidas típicas das que representam paisagens: a horizontalidade extensa reforçada pela pouca altura da tela, recurso que, mesmo ela sendo um díptico, ou seja, dividida em duas partes, não diminui; a cor de chão ferruginoso, mais vivo do seu lado direito, onde predomina um marrom-avermelhado de brasa assoprada, árido como as imagens das planícies marcianas, entre outras particularidades que convidam o olhar do espectador a varrê-la de um lado para o outro, avançando e recuando como plantado no interior de um território plano, sem bordas, elevações e outros acidentes capazes de lhe tolher o movimento.

Com a aproximação e consequente observação minuciosa outras revelações acontecem. Partindo da metade esquerda, vê-se que ela é tomada por uma sucessão regular de estreitas faixas verticais, uma clara e outra escura. As claras com a mesma coloração marrom-avermelhada da metade direita, estratégia que garante a unidade dessa pintura, e as faixas escuras que, como se constata com a aproximação, correspondem à superfície do tecido – uma lona de caminhoneiro usada. Olhando-se bem, percebe-se que não há qualquer vestígio de pintura feita pelo artista, a coloração e as marcas são provenientes do desgaste do material pelos anos de uma vida útil, dura e intensa. Ainda em relação à metade esquerda, convém salientar dois detalhes importantes: em primeiro lugar, uma mancha irregular e escura situada em sua parte inferior direita, responsável pelo relativo obscurecimento das faixas luminosas. Esse sombreamento dá a sensação de que o fundo acinzentado de lona engolfa levemente essas faixas, rebaixando sua claridade, efeito que também acontece ao longo dessa metade da pintura, com muitas nódoas e imperfeições, sobretudo ao longo de suas extremidades superior e inferior. A segunda particularidade concerne à capacidade dessas faixas alternadas de se contrapor ao movimento lateral dos olhos do observador, levando-os a deslizar para o alto e para baixo, acompanhá-las no rompimento virtual dos limites do campo pictórico.

A metade direita da tela tem um tratamento mais homogêneo, sem interferências de natureza ordenadamente geométrica da magnitude das faixas, o que não impede alguns acontecimentos dignos de nota, proporcionados pelo acaso ou pelo artista durante o processo de produção, precipitando e encaminhando o processo químico que ele próprio desencadeou sobre a lona estendida sobre o chão, grande- mente responsáveis pelo poderoso resultado pictórico obtido. Nesse lado direito a superfície tem um fulgor difuso e desigual mas, ainda assim, dominante. No último terço desse lado há um grupo de estrias horizontais resultantes, talvez, do enruga- mento do tecido, assumido pelo artista como um corpo animado, com idiossincrasias e comportamentos próprios e que comprometem a impressão de homogeneidade do conjunto. Essas estrias e fissuras correm lateralmente, arrastando consigo o olhar para fora da pintura, acentuando o efeito paisagem comentado logo à saída. Os outros acidentes, como a pequena constelação formada por estrelas escuras, crostas e grãos menores, açulam a atenção, fazendo o observador rastrear com calma a beleza cheia de segredos recônditos desse palco raso que é a pintura de José Bechara.

A entrada de José Bechara nas artes foi um acontecimento relativamente tar- dio, diferente de seus colegas de geração que, mesmo formados e atuantes em outras profissões, levavam o trabalho artístico numa via paralela. No seu caso, a frequência nos cursos livres oferecidos pela Escola de Artes Visuais do Parque Laje deu-se com o artista maduro e bem-sucedido num ofício herdado do pai e que logo se revelou não ser o dele. Em compensação, sua sensibilidade aliada à sua imensa capacidade de trabalhar a fundo uma ideia, tudo isso mais a determinação própria de quem sabe ter muito a perder, levou-o rapidamente a conquistar um caminho poético, uma linguagem – pintura – e um modo de realizá-la que seria sua marca registrada.

A pintura de José Bechara começou no momento em que ele a compreendeu em acepção ampla. Diversamente de outros pintores do período, não lhe pareceu que ela continuasse a perpetuar os atributos de sempre, a capacidade especial em escolher e relacionar cores, a produção e edição de imagens ou, ainda, a construção de estruturas visuais ditas abstratas. Todos esses valores mais ou menos anacrônicos, alguns deles firmemente fincados no passado da pintura, a maioria dependente de pincéis e do matizado rol de gestos neles implicados. Seu caminho pessoal delineou-se ao entender que a pintura acontece em tudo e o tempo todo, em toda e qualquer superfície de material ou objeto produzido pelo homem, por definição e sem exceção. Afinal, qualquer material possui cor própria. Cabe ao homem decidir se aplica ou não uma outra cor sobre a cor existente. A descoberta da lona de caminhão como base de sua pintura, in natura ou modificada, veio-lhe na qualidade de desdobramento de suas conjecturas sobre o tema.

A lona de caminhão é um sucedâneo do tecido tratado com uma base de gesso classicamente utilizado para a produção de pinturas. A escolha da lona de caminhão já desgastada sinaliza a opção do artista por um material com vida anterior, sem a idealidade tão prometida quanto mentirosa da tela pura como uma donzela virgem. Só por isso fica claro seu vínculo com as poéticas de extração povera, numa linha genética que deita raízes na obra de Antoni Tàpies, para quem os materiais possuem vida e histórias próprias, o que torna cada um deles insubstituível, irredutível a qualquer outro. As marcas, manchas, inscrições, carimbos, lacerações, escoriações, incisões, rasgos e remendos de uma lona de caminhão têm a ver com a passagem do tempo, com a produção de um desenho labiríntico e mutável graças à sobreposição contínua de camadas e mais camadas de ações, várias delas deduzíveis enquanto outras impossível de se alcançar a origem. O anonimato comanda o processo que tem como agente de fundo as intempéries, a força dos elementos se abatendo sobre o material, o sol, a chuva, o vento, magoando-o como as amarrações retesadas, os atritos ásperos, os vincos e as dobras permanentes deixados pelas cantoneiras agudas das caixas das mercadorias transportadas. Nesse ponto os caminhos de Bechara se cruzariam com os de Yves Klein, interessado em fazer com que algumas de suas pinturas acolhessem os fenômenos naturais, não estivesse nosso artista igualmente interessado no trabalho humano, em sua capacidade de se atracar à matéria, transformando-a, e na circulação do material pelo mundo assimilando sinais e registros de situações e sítios variados. Por fim, uma leitura descuidada poderia sugerir o parentesco dessa pintura com as de Raymond Hains, sobretudo aquela reunida sob o signo do acaso, quando o artista recolhia das ruas de Paris os tapumes das construções, o lugar de uma pintura produzida espontaneamente.

José Bechara, entretanto, nunca se acomodou na atitude reticente implícita na apropriação pura e simples; sua operação jamais se limitou a emoldurar o que já está dado, o que equivaleria a fazer proselitismo do próprio olho e de sua capacidade de editar o interesse dentro da sujidade e da matéria espúria produzida cotidianamente. Seu foco sempre foi o da produção, a de participar de uma arena viva, direcionando, cadenciando, apressando, alterando o rumo preexistente do jogo das forças, deixando notar sua presença por associação, isto é, como mais uma presença e não como a única, como querem nos fazer crer os pintores que enfrentam a tela em branco, e que para tanto assumem afetações demiúrgicas. O procedimento derivado desse entendimento traduziu-se no seu peculiar modo de operar, fazendo do tecido carregado de vestígios de ações anteriores um canteiro de obras onde deposita a matéria que posteriormente desestabiliza. Palha de aço, emulsão de cobre, aço carbono são alguns materiais empregados para a produção de suas pinturas, alvo de processos que têm por objetivo sua oxidação, a corrosão decorrente de sua troca com o oxigênio.

No caso de Margarida Stripe, o processo principia com o artista depositando camadas de palha de aço sobre a lona aberta no chão para em seguida começar a molhá-las. O composto água e oxigênio ataca os dois materiais, a palha de aço, que rapidamente se dissolve, macerada, passando de feixes capilares para pedaços pétreos irregulares, facilmente despedaçáveis, como também a própria lona onde esse material está repousado. A ação abrasiva do aço deliquescente alcança os estratos superficiais do tecido, ulcerando-o, tingindo-o permanentemente com o caldo marrom-avermelhado que ele purga. Os anos de experiência e a consequente intimidade do artista com esse processo torna-o consciente do ponto exato em que deverá ser suspenso. Na tela em análise, diversamente de alguma em que são deixados resíduos sólidos colados ao tecido, o artista limitou-se a varrer todo o material, deixando apenas as sobras epidérmicas do processo de feitura. Margarida Stripe, contudo, é um díptico, e muito embora a pintura como um todo tenha passado pelo mesmo tratamento descrito, a metade da esquerda passa por uma preparação anterior distinta e que culmina com as faixas já referidas.

Nessa, como na maioria de suas pinturas, o artista, tendo estabelecido o forma- to pretendido, estira longas faixas de fita adesiva, protegendo as partes encobertas da precipitação que fará posteriormente. Ao contrário da operação química, aberta a reações que eventualmente escapam do seu comando, o controle dessa etapa é total, o que é enfatizado pela geometria segura, cristalina, pela ampla gama de desenhos regulares que obterá ao término das fusões encadeadas. Na pintura em questão, as faixas claras e o lado direito da pintura noticiam a dinâmica dos materiais, o sutil processo de perda de elétrons sofrida pelos metais em sua combinação com o oxigênio. Alternando o claro com o escuro, as faixas verticais evidenciam a convivência de dois processos, um, patente nas faixas claras, produzido pelo artista à queima roupa, portanto, ocorrido recentemente, e que contrasta com a pátina acinzentada relativamente uniforme que o tecido já trazia com ele, e que recobre os retalhos verticais; essas faixas verticais são fragmentos de uma segunda pele cujas marcas a passagem do tempo vai escurecendo e silenciando.

Fazendo uso de um formato capaz de deflagrar no observador uma experiência homóloga à que ele tem diante de uma paisagem, José Bechara obtém através do espaço plano da tela uma paisagem temporal.

 

SEM TÍTULO [da série Gelosia, 2010]

Como as outras obras da série Gelosia, também essa é basicamente composta por uma camada de placas de vidro apoiadas no chão e encostadas no canto de uma sala, erguidas e deitadas de lado. O que diferencia essa no tocante aos materiais é a inclusão de uma placa de mdf com formato trape- zoidal, revestida de fórmica verde-clara, entre duas de vidro listadas de uma tinta ferruginosa. A obra acontece através da reunião desses elementos num procedimento tecnicamente próximo a uma assemblage – termo inventado pelo artista francês Jean Dubuðet para designar uma colagem feita através de objetos –, que José Bechara soube retomar em chave inspiradamente renovada, do que é prova as problemáticas tentativas de classificá-la. Elementos gráficos, pictóricos, escultóricos e até mesmo arquitetônicos mesclam-se para a constituição de um volume disperso, com dimensões variáveis mas que costuma se resolver ocupando ao redor de dois metros e meio de altura, seis de largura e um e meio de profundidade, uma margem de erro que mostra sua vocação para acomodar-se ao lugar que lhe for reservado, uma adaptabilidade coerente com a diversidade de materiais nela empregados, que são poucos mas contrastantes, cada um deles provido de forte personalidade. Na obra em análise são qua- tro, divididos entre suportes e materiais a eles aplicados: vidro, madeira mdf, fórmica, tinta acrílica – uma emulsão ferrosa oxidada.

A palavra Gelosia concerne à arquitetura colonial e barroca, significando as grades formadas por ripas de madeira alinhadas em intervalos regulares, formando desenhos variados que na prática garantem à janela incremento da segurança e uma transparência de mão única, de fora para dentro, resguardando o ambiente da casa da curiosidade dos passantes, precaução que no passado referia-se, sobretudo, às mulheres. Suas raízes, contudo, são ainda mais antigas, remetendo à arquitetura mourisca, ao engenhoso muxarabi árabe, cujas releituras, depois de passarem pelas gelosias, desembocaram na arquitetura moderna, sobretudo a partir de sua recuperação por parte de Lucio Costa, responsável pelo uso da tradição construtiva colonial como fonte da produção modernista.

A referência explícita à janela demonstra que com essa obra José Bechara opera um cruzamento de fontes: se, por um lado, diz respeito à arquitetura, por outro denota seu compromisso com a pintura, cuja etapa clássica praticamente principia no momento em que se livra do jugo da arquitetura e, graças ao advento da tinta a óleo, torna-se portátil, indo daí para o cavalete e dele para a parede, onde ganha mol- duras, de resto um atributo próximo ao batente, outro elemento arquitetônico. Mas só isso não explica o ardiloso comentário que o artista endereça à pintura. Será preciso considerar, ainda, a herança naturalista desse suporte, o compromisso com a representação do visível tão verossímel quanto possível, pressuposto contido já nos escritos estéticos de Aristóteles e que no início dos anos 1300, com Giotto e a perspectiva, ganha um extraordinário alento, expandido-se com o Renascimento e o Humanismo. É, portanto, com a pintura como janela que aqui, com esse trabalho, também se evoca.

Há um outro elemento em questão, fundamental para o entendimento da amplitude do trabalho analisado, que tem um pé na arte e outro na arquitetura: o canto, a corriqueira parte da sala formada pelo encontro das paredes. Os Contra-relevos de Canto, de autoria do artista russo Vladimir Tatlin, produzidos na passagem de 1914- 1915, são os responsáveis da incorporação explícita da arquitetura no processo artístico, parte de sua tentativa de liberar a arte de tudo aquilo que a cingia – ela mesma, no limite –, não apenas de seu milenar compromisso com a representação do visível, como também os suportes dos quais ela se valia, como a pintura e a escultura. Para salvar a arte do peso da tradição Tatlin propõe abandonar essa designação trocando-a pelo termo construção, que em termos práticos significava a substituição do objetivo representacional da arte em favor de uma síntese entre o estético e o tecnológico, concentrada nas possibilidades intrínsecas dos variados materiais empregados. Ao mesmo tempo em que realizava esse passo, destituiu dois elementos fundamentais da pintura e da escultura, a saber: base e moldura, dois dispositivos relacionados com o posicionamento no interior do espaço ambiental; no caso do primeiro, um ponto qualquer que não a parede, já que estas eram uma prerrogativa das pinturas que nela se penduravam. Arrastando sua construção para o canto da sala, nenhum dos lugares anteriores, Tatlin produziu um lugar novo, aderido à arquitetura mas sem se confundir com ela, e uma nova modalidade daquilo que, na falta de nome melhor e graças à elasticidade histórica da terminologia, seguimos chamando de obra de arte.

De olho a um só tempo na tradição arquitetônica árabe dos muxarabis e nos Contra-relevos de Tatlin, José Bechara inventa esse trabalho semelhante a um “ensanduichamento” de vidros e madeira, tratados como super!cies pictóricas e dotados da volumetria própria à escultura.

O uso do vidro na expressão artística, nomeadamente na pintura, não chega a ser propriamente novo, data da metade da segunda década do século XX, quando Marcel Duchamp iniciou seu “Grande vidro”, apelido da sua obra-prima A Virgem Despida por Seus Celibatários, Mesmo (1915/1923). Hoje largamente conhecida, essa obra foi mantida na sombra durante décadas, e mesmo a versão revisada e ampliada do livro clássico de Lazlo Moholy-Nagy, New vision – fundamentals of design, painting, sculpture, architecture, publicada em 1938 nos Estados Unidos, livro que nasceu a partir das reflexões e pesquisas de seu autor sobre os usos do vidro, potencializado após a Revolução Industrial, e que não incluiu a obra de Duchamp, sequer mencionando o nome do artista. Não será o caso de listar os artistas, mas sim fixar algumas observa- ções sobre esse material, destacando os recursos que José Bechara extrai dele, como se pode cotejar na obra analisada.

Diferentemente das paredes, no geral feitas de madeira ou tijolos, o vidro plano comum tem a discrição típica dos corpos transparentes. Encostando-se placas de vi- dro numa parede, esta, ainda que pintada com o branco típico das salas expositivas, incorpora-se à obra, ganhando o estatuto de campo pictórico, condição que o nosso artista amplia com eventuais aplicações de cores em áreas quadrangulares, semelhantes às placas justapostas. Paredes são quase sempre enfáticas, mais ainda quando independentes da arquitetura; quanto ao vidro, mesmo quando vedando portas e janelas, quase não se faz notar, prestando-se com generosa amabilidade ao transpor- te do dentro para fora e vice-versa. Quase não se dá a ver, presença notável graças à posição de quem se posta diante dele ou do ângulo da incidência da luz, e que quando acontece é pela via da reflexão, pelo efeito especular colando-lhe à sua pele fragmentos do entorno. É, de fato, grande o parentesco do vidro com o ar e, às vezes, sobretudo quando se está distraído, é, para nós, di!cil perceber sua materialidade, impressão corroborada cada vez que damos com a cara nele.

Mais ou menos transparentes, os vidros têm profundidade limitada ao que estiver por detrás deles. Mas, tal como já salientado, o vidro não é apenas profundidade ou, por outra, sua profundidade não está condicionada apenas ao que lhe serve de fundo, como também, em função de sua capacidade reflexiva, daquilo que lhe vai pela frente ou entorno, o que lhe garante uma profundidade invertida e divergente, que avança sobre o ambiente onde está o observador. Diante de um vidro nós nos vemos vendo. Indo adiante nesse exercício de apresentação das propriedades do vidro, sua rarefeita corporeidade deve-se, em parte, à coloração esverdeada, decorrência de sua espessura, e de suas bordas, nítidas no modo como fendem o espaço ambiental e no modo como se separam do que lhes vai por detrás.

Na obra em discussão, José Bechara não se limita a justapor as placas de vidro encostando-as levemente inclinadas de modo a garantir que não caiam para a frente. Tirando partido do canto, as placas de vidro são inclinadas em posições desencontradas além de deslocadas umas das outras, arranjo que contribui para que os reflexos se sobreponham e se embaralhem, para que haja variação de densidades e, por conseguinte, de adensamento da coloração, além de jogos entrecruzados de sombras e das linhas verticais, horizontais e diagonais, cruzando o espaço, interceptando-se, desviando a atenção. Em meio a elas, reforçando o dinamismo do conjunto, o alto e delgado plano trapezoidal pintado de verde, atravessando diagonalmente o centro da peça.

Por fim, as faixas intervaladas feitas de tinta oxidada. Ao contrário do vidro, material quase sem interioridade apreensível a olho nu – vê-lo é ver além e aquém dele –, a tinta ferrosa e oxidada sugere interioridade. Opaca mas desfazendo-se em corrosão, o olhar fixa-se em cada faixa percebendo-lhe as diferenças, como que adivinhando o futuro e o passado do processo de degradação do metal. Ao corpo leve e anódino do vidro opõe-se o corpo denso, a materialidade visceral do ferro, mesmo que transformado em tinta líquida, aplicada numa fina camada sobre a lâmina. Duas placas de vidro são pintadas com essas faixas e sua sobreposição parcial revela que em ambas as distâncias são as mesmas. Pintadas em ordem alternada, as faixas encaixam-se visualmente em toda a área em que as duas placas se interceptam. Enquanto isso, as sombras somam-se aos vultos quadriláteros das outras placas de vidro, às linhas que as limitam, fazendo do conjunto um campo de irradiação de fenômenos provenientes de super!cies desconexas, deslizantes, em movimento perpétuo, mais ou menos rápido, consoante à velocidade do nosso olhar sobre a obra.

 

RUN [da série A casa,2010]

Run descende da instalação Ok,ok, let’s talk, apresentada pela primeira vez em 2006 no espaço Octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo e, antes dela, da ação/instalação A Casa, realizada durante o programa de residência artística Faxinal das Artes, ocorrido em 2002 no antigo assentamento para operários, Faxinal do Céu, no interior do Paraná, posteriormente convertido em projeto e que se desdobrou em desenhos, fotografias, esculturas e objetos, além das instalações mencionadas.

Pensemos, antes de mais nada, na mesa, objeto constante e exclusivo das duas instalações, empregado modularmente. A mesa, como sinteticamente explicou o artista, “é”, querendo dizer com isso que é um desses objetos cuja familiaridade impregna gente de civilizações e culturas variadas no tempo e no espaço. Não há quem não a conheça, não a diferencie dos outros objetos, não lhe associe significados e funções, das mais triviais e prosaicas às mais herméticas. Sobre e sob a mesa, e a ela amalgamada, uma miríade de ações e significados correlatos.

Como ponto de partida e prova de sua imprescindibilidade, assinale-se o preparo das refeições e os ritos envolvidos em comê-las, só ou acompanhados, conversando com os outros, lendo um livro, um jornal ou ainda simplesmente atento à refeição, situações que a configuram como a responsável pelo mais complexo dos espaços domésticos. Mesa é espaço de comunhão, de troca de ideias e sentimentos, patente no compartilhamento equitativo de uma mesma coreografia, cada pessoa com seu tronco ereto sentado numa cadeira tendo à frente, rente a si, uma pequena área quadrangular definida pelo movimento dos braços e que lhe pertencerá pelo tempo em que ali permanecer, prova de seu ajuste ergonômico, de sua depuração e adestramento ancestrais. Mesmo sua condição de objeto difundido industrialmente em soluções mais ou menos rebuscadas não obtém reduzir sua complexidade e, por- tanto, o interesse que a ela devotamos. A mesa sempre foi e será um insubstituível local de trabalho intelectual e braçal, célula de estudo e quintal para jogos portáteis, de ensimesmamento e extroversão, clareira onde abrigamos nossos espíritos, onde nos reunimos para minimizar nossa solidão.

Clareira, quintal, abrigo. Mesa é chão recortado e elevado. Como chão, pele. Como a roupa é pele, como as paredes são pele, como as casas, como as cidades, como tudo que construímos a partir da natureza, que dela nos aparta ainda que ao fim ela venha entranhada em tudo, mesmo que transformada, alterada e até vilipendiada. Na natureza cabe tudo, porquanto tudo, provém dela. Por sua vez, o chão como pele diz respeito a essa compulsão de embalarmos o que há, construir camadas de capas capazes de nos proteger dos abundantes mistérios que regem a vida em geral, dos ver- mes às movimentações tectônicas. Ainda assim, tudo se movimenta, se convulsiona, se transforma, e as ilusões de estabilidade vão se estilhaçando. Tudo, note-se, não só a natureza, até porque, como já foi dito, todas as coisas lhe pertencem, como o chão que construímos sobre o chão primeiro, como as várias camadas de chão que se lhe vão sucedendo, comprimindo objetos, casas, ruas, ossadas, fazendo da remoção de um entulho qualquer, a escavação de um tunel de metrô, uma aventura arqueológica como a que Felini nos apresenta em seu filme Roma, quando, sentados na sala de cinema, testemunhamos, fascinados, o mesmo encantamento da equipe do cineasta e, supostamente, pois não sabemos se isso efetivamente aconteceu, dos responsáveis técnicos pela engenharia do processo, testemunhamos, dizia, figuras humanas que nos olham com o mesmo frescor e interesse com que olhavam aqueles que viviam no tempo em que foram pintados.

Em Ok, ok, let’s talk havia um grande conjunto de mesas praticamente iguais dentro do espaço generoso da Pinacoteca, regular como as lajotas de concreto com que são recobertas as calçadas, como os tacos com os quais revestimos os pisos domésticos, formando um espaço árido, contrário à afabilidade proposta por esse objeto, sentimento agudizado pela presença de dois encostos de duas cadeiras distantes uma da outra, emergindo desse chão, nele sufocadas e encerradas. Aqui e ali a sutil flexão do tampo de uma mesa, aberturas estreitas como as guelras dos peixes, insinuando uma perturbação, o rumor de acontecimentos subterrâneos.

Igualmente calcada em mesas, em Run a situação é bem mais radical e dramática. O número mais reduzido de objetos e a assimetria da organização desmantela a certeza de um crescimento regular, movido por um princípio racional. O grupo de mesas se desfaz em planos maiores e menores compostos, elevam-se em altura e posições variáveis graças a vigas de ferro, as mesmas utilizadas para a fundação e estabilidade das edificações, e que, abandonando o lugar que lhes foi reservado pelos projetos estruturais, arrebentam as peles assim como as fraturas expostas exibem os ossos responsáveis pelo desenho regular do nosso corpo. Run assinala a falência dos espaços projetados para o nosso conforto, as promessas da engenharia, arquitetura e design por espaços e objetos afáveis, organizados numa sintaxe calma que pensávamos eterna.

 

SUPER OXY COM 12 CABEÇAS [da série Esculturas Gráficas, 2010]

A série à qual essa obra pertence foi concebida como “exercícios gráficos”, conjunto de desenhos transpostos do espaço bidimensional do papel para o espaço do mundo. Considerando que se trata de variações quanto à posição e arranjo de uma única figura geométrica: o cubo, o “gráfico” refere-se a uma modalidade particular de desenho, o projetivo, desenho de extração racional, que vai de dentro para fora. Por outro lado, a análise dessa e das outras obras da mesma série, incluindo os desenhos preparatórios, levam a concluir que esses exercícios gráficos são também estudos sobre a mudança de estado, sobre a passagem de uma dimensão para outra.

Por si só a escolha do cubo, sólido geométrico reconhecido como puro produto do espírito, trai o interesse de José Bechara, ao materializá-lo sob a forma de escultura, em discutir os limites desse fundamento do platonismo – Platão associava o cubo ao elemento terra em razão da estabilidade de suas bases quadradas –, seu comportamento aos imperativos dos materiais, à força da gravidade, à ação dos ele- mentos sobre todos os seres de algum modo entrelaçados à vida. O artista realiza esses exercícios operando com uma grande quantidade de cubos, assumindo como parte das suas conjecturas a observação das seguintes variáveis: sua configuração, o modo de organizá-los, as matérias de que são feitos, as cores que os revestem, as luzes próprias a essas cores e, finalmente, as luzes que o próprio artista, pensando a iluminação como instância de produção do espaço, faz incidir sobre a obra pousada diretamente sobre o chão.

No campo das artes visuais a presença do cubo, como a de outros sólidos geométricos, é constante e longínqua. Os conhecimentos tradicionais reconhecem-no como ente que se relaciona com a experiência que temos do espaço, de tal modo que às direções – Norte, Sul, Leste, Oeste, Zenith e Nadir – ele é dotado das faces anterior, posterior, esquerda, direita, superior e inferior. Em termos algébricos o 6 é a soma e o produto dos três primeiros números – 1 + 2 + 3 – e divisível por eles. Sua designação corrente de número perfeito adequa-se à descrição das sagradas escrituras quando nela se refere aos seis dias dispendidos na criação do cosmos. Simples e exato como a estrutura em seis pontas de um floco de neve, o número 6 foi transposto para a forma de um cubo que há tempos é o centro das peregrinações islâmicas em Meca – Kaaba significa, literalmente, cubo. Também o santuário do templo de Salomão tinha o for- mato cúbico, assim como a visão que São João teve da Nova Jerusalém.

Despojado de toda essa imensa carga simbólica, o cubo e seus atributos de sólido geométrico, seu lugar na geometria como noção basilar da racionalidade, volta com força surpreendente a partir da produção minimalista e conceitual logo ao princípio dos anos 1960. Artistas como Carl André, Donald Judd e Sol LeWi$ foram pródigos em especulações sobre a infinita variabilidade do cubo, passível de ser obtida através de sua repetição ordenada. Enquanto isso Michael Heizer, Tony Smith, Robert Morris, Robert Smithson, Hans Haacke, Lucas Samaras e até mesmo Eva Hesse pensaram-no como suporte de ambiguidades ou produtor de situações espaciais imprevisíveis.

Super Oxy com 12 Cabeças retoma esse caminho em solução muito pessoal. Ao contrário da ação metódica, do cuidado em dispor cubos no espaço a partir de balizamentos rígidos e precisos, o ritual frio e incaracterístico dos minimalistas, José Bechara efetua um empilhamento, um aparente embaralhamento do sólido geométrico, dividido em duas configurações, duas versões bem distintas, embora dotadas das mesmas dimensões e materializadas em ferro oxidado: uma versão aberta, ou seja, cubos reduzidos às suas arestas, às retas formadas pela interseção dos planos que o compõem; outra, fechada: caixas cúbicas opacas, impermeáveis à vista. Como que pontuando a confusão instaurada pela miríade de cubos abertos sobrepostos, vêm 12 cubos fechados – as cabeças do título da obra –, volumes límpidos, encerrados em si mesmos.

Empilhados, apoiados, encaixados uns nos outros, o desenho/escultura acon- tece esparramando-se pelo espaço expositivo como um esboço garatujado de vérte- bras confusas, um embaraçamento de linhas duras e retas que tira partido do jogo de luzes e sombras, compondo um conjunto curioso na medida em que o módulo que o constitui identifica-se com certeza e racionalidade. Enquanto os cubos assentados no chão, apoiados em uma das faces, passam a sensação de estabilidade, a segunda, a terceira e até a quarta camada vão sendo compostas por cubos enterrados, pirâmides invertidas, deslocadas, tortas, apoiadas nas arestas dos cubos que lhes estão abaixo. Aqui e ali, encarapitados nos cimos dessa estrutura desagregada, uma expansão limitada pelas quatro paredes, estão os cubos fechados e, apesar de sua aparência pesada, na medida em que estão enviesados, oblíquos, esconsos, parecem flutuar, frutos densos e duros paralisados no espaço. A sobreposição das linhas impede a contagem dos volumes abertos e, ainda que sejam nítidas e escandidas, a iluminação projeta suas sombras para o chão, variando o desenho de onde se originaram, puxando-o para uma textura difusa. O uso de tinta ferrosa oxidada acentua a sensação de caos, evidencia o processo de erosão sofrido por esse produto do espírito e o caráter solar, normalmente associado aos sólidos geométricos, desfaz-se em epidermes dramáticas. Essa erosão do material, que faz prever a destruição da peça como um todo, estende-se a uma certa noção de escultura, aquela que a identifica como objeto estático e opaco, a interromper a continuidade do ambiente. Pensar nessa obra significa assumi-la simultânea e paradoxalmente como desenho corporificado e escultura sob o risco de desmaterialização.

 

SEM TÍTULO [da série Ar, 2009]

Num mundo varrido por forças desagregadoras de toda ordem, condição que mesmo o imenso e indiscutível progresso tecnológico não amenizou, a casa ainda figura como metáfora do abrigo e da segurança, um produto espacial até bem pouco tempo tido como duradouro, capaz de resistir às mudanças ao longo do tempo. Isso explica porque mesmo ainda hoje, quando as metrópoles e cidades médias do mundo todo vão conhecendo um processo de verticalização des- medido e provavelmente sem retorno, continua-se a repassar para o entretenimento e educação das crianças a versão mais estereotipada da casa: o volume cúbico e o paralelepípedo provido de telhados com duas-águas que elas constroem através dos empilhamentos e encaixes de legos e pequenos construtores, e frequentemente integram suas ingênuas ilustrações da célula familiar.

No desenho em questão, executado em tinta vinílica sobre papel Debret de 200 gramas, o artista traz uma variante da imagem habitual de uma casa vista em perspectiva, carimbando-a sobre o papel, pressionando sobre ele o clichê com os contornos entintados de sua imagem. Concisa e rígida, a figura aparece estampada quatro vezes em posições bem diferentes, desalinhadas em relação às margens horizontais do papel, duas delas entre tombadas e empinadas, todas com as bases em diagonal, o que contribui para a sensação de que estão soltas, à deriva num papel de 151 X 191,5 cm, dimensão um pouco maior do que as que criam uma situação intimista, convidam a um olhar mais próximo, minucioso. A escala do desenho, gravura, pintura ou escultura, a rigor não importa qual a linguagem, é responsável pelo tipo de apreciação, de abordagem, postura corporal aí implicada, que um espectador tem dele.

A incompletude das imagens com borrões em algumas partes, notadamente nos vértices em que as linhas se encontram, assim como as partes falhadas, deve-se ao modo deliberadamente descuidado com que foram pressionadas na almofada pejada de tinta azul e posteriormente impressas. Uma aplicação desequilibrada com pedaços do desenho sequer vistos em sua inteireza, o que não impede de ser completado por nossos olhos em razão da previsibilidade do motivo. Posição no papel e imprecisão no acabamento contribuem para a ideia do colapso de um signo indicativo da capacidade humana de se fixar no território, que em algum momento significou o fim de sua errância e a correspondente nostalgia própria às comunidades nômades. A imensa nuvem azul, em cujas frestas as casas aparecem, marcam o ataque a um signo tido como atemporal.

O ataque e o arranjo caótico das casas decorrem também de elas não estarem só mas dividindo o espaço do papel com duas grandes nuvens azuis, espessas e explosivas. A julgar pelo espaço que ocupam e por suas configurações, são elas as responsáveis pelo desarranjo das casas, fonte das violentas forças que as colocam em risco ou a submetem a um torvelinho no qual rodam sem direção. As nuvens pouco têm das nuvens naturais, no sentido de que não pretendem copiá-las, em que pese sua homologia com cúmulos-nimbos baixos e escuros, grávidos de água. São produtos da diluição de porções de tinta em estado pastoso feita diretamente sobre a super!- cie de papel, um verdadeiro encharcamento capaz de fazer com que o preparado se vá desmanchando na minúscula topografia do papel, lavando-o em ondas desiguais, percorrendo-lhe os filetes imperceptíveis a olho nu e as sensíveis depressões, o enrugamento que o líquido impõe ao papel. O derramamento varia de direção, resultado da mudança de posição da folha de papel no decorrer do processo de sua produção, o que se verifica pelo modo como ela escorre para cima e para os lados. As duas grandes nuvens, produtos da aplicação de dois bocados da emulsão azul, têm núcleos compactos, perdendo a intensidade à medida que progride para as zonas periféricas.

Simultaneamente nuvem e mancha, esses dois acontecimentos pictóricos sobre papel alimentam a imaginação, convidam à percepção de formas às quais são em- prestados significados aleatórios, condicionados aos repertórios de quem olha para elas. São dois vórtices de energia azul cuja progressão arrasta consigo um de nossos signos mais familiares e caros, um dos escassos esteios com que nosso surrado e esperançoso imaginário pensava contar.

 

A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
Por vinte, vinte contos.
Carlos Drummond de Andrade, Boitempo

Determinados trabalhos representam mudanças radicais na trajetória de um artista. Em relação ao percurso de José Bechara A Casa talvez seja o mais importante de to- dos eles. Produto de uma situação muito particular, um programa de residência para o qual ele não havia preparado nada em particular, pois não lhe parecera possível ou mesmo produtivo levar adiante qualquer trabalho naquele sítio, distante das condições do seu estúdio, A Casa significou a ampliação inesperada e abrupta de suas investigações. Até aquele momento, abril de 2002, exclusivamente pintor, com uma sala dedicada a elas na 25a edição da Bienal de São Paulo, então inaugurada havia pouco mais de um mês, com A Casa José Bechara mergulhou intensivamente em pesquisas sobre a tridimensionalidade, produzindo essa que foi sua primeira instalação, e uma expressiva coleção de trabalhos astuciosamente situados entre escultura, de- senho, objeto e pintura. Quanto à pintura propriamente dita, aquela responsável pela atenção que ele passou a merecer desde sua saída da Escola de Artes Visuais do Par- que Laje, no comecinho da década de 1990, continua ocupando um lugar proeminente em suas pesquisas, mas ganhou novo impulso naquele momento, radicalizando certos processos e permitindo-se novas experiências.

Em relação ao seu trabalho, José Bechara cultiva gestos, materiais e processos intensos e fortes. O contato com seu trabalho sugere conflito, tensão e, quando há equilíbrio, é sempre precário, bordejando a crise e a destruição. Mesmo seus desenhos e esculturas de pequena escala têm uma fatura energética, um acúmulo de grafismos rápidos e expressivos, superfícies marcadas por oxidações entre outros sinais indicativos de potência e franco desenvolvimento de um processo além do que se pode ver. Nesse sentido, pode-se imaginar sua reação ao passar os 15 dias em que durou o programa Faxinal das Artes, uma residência artística acontecida em maio de 2002 no município de Faxinal do Céu, interior do Paraná. Cem artistas de todo o Brasil trabalhando incessantemente, apresentando uns aos outros suas respectivas obras, discutindo-as abertamente, compartilhando dúvidas e achados. Com essa azáfama criativa, foi-lhe incomodando a falta de um espaço adequado às precipitações de oxidação de palha de aço, base de suas pinturas, e também foi se desmontando a expectativa de um ameno e oportuno retiro em companhia da esposa e de suas duas filhas, uma delas muito pequena, como lhe prometia o abrigo num dos 250 chalés de madeira pintados com o apuro de um cenário idílico de um filme de Tim Burton passado nos Alpes suíços. Passados alguns dias, José Bechara foi seduzido pela ideia de realizar algo com o artigo mais abundante e em maior evidência no local: as casas e seus móveis.

A casa escolhida pelo artista para sua intervenção, igual a todas as outras da antiga vila operária, tem a seu favor o fato de corresponder a um verdadeiro estereótipo. Com sua cobertura dividida em duas-águas, feita em telhas cerâmicas de barro, a pintura branquinha de suas paredes de madeira ripada refletindo levemente o verde- escuro dos beirais e do fechamento losangular do plano que liga a fachada ao teto, a casa de Bechara, as casas do Faxinal do Céu, é a casa ocidental por excelência, remete à casa de Adão no paraíso, tema da célebre pesquisa de Joseph Rykwert sobre a caba- na primitiva; vale como definição mesma do abrigo, da noção de aconchego, presente nos contos de fadas, no desenhos que fazíamos quando crianças, acrescidos de chaminé, árvore e sol. A prova da natureza standard da casa escolhida por José Bechara está em sua indiferença ao declive do terreno, um problema, em princípio, a ser observado pelo projeto, contornado através da retificação do terreno, a construção de um pequeno platô onde ela seria instalada. Nada disso. Estruturada em pilares de madeira, o lado da casa onde há a entrada principal guarda uma prudente distância do chão, recurso eficaz contra a umidade, enquanto do outro lado, com o chão em cota mais baixa, os estreitos pilares crescem, garantindo que ela se mantenha reta, como que suspensa no ar. Um verdadeiro logotipo, uma casa reduzida ao desenho elementar, despoja- mento que o artista levaria mais adiante, sob a forma de cubo, em suas realizações derivadas dessa obra seminal.

Dentro da casa, como de todas as outras que integram o condomínio do Faxinal do Céu, camas, mesas, mesinhas, cadeiras, sofás, poltronas, colchões, almofadas, banquetas, armários, estrados, a maioria dotado de variações do marrom próprio à madeira, além daqueles revestidos em tecido, courvin, fórmica, nas cores branco e verde, manifestação do desejo de alguém em ser coerente com a cor da habitação. Todo esse mobiliário era tão esquemático, despido de interesse, convencional e ordinário quanto a casa. Talvez até mais. A casa ao menos guarda sua aparência de herança cultural, resultado natural de uma arquitetura anônima com séculos de aperfeiçoa- mento, atravessando, incólume, culturas e geografias. Quanto ao mobiliário, ostenta uma banalidade moderna, móveis baratos despojados de qualquer pensamento projetual ou atributo plástico mais rebuscado. De qualquer modo, casa e mobiliário perfeitamente integrados, um idílio funcional, sem pretensões de identidade, como um quarto de hotel que apenas e tão somente tenta disfarçar sua condição de abrigo temporário, o que talvez desagradasse seus hóspedes, e que para isso exala anonimato e invisibilidade.

O artista valeu-se da casa/emblema para colocar em questão o papel da casa em geral, o uso que dela fazemos desde tempos imemoriais, seus sucessivos aperfeiçoamentos, como as casas romanas dos patrícios, casas aristocráticas, sem aberturas para o exterior, um porto de silêncio e segurança e que levava o nome de domus, raiz da palavra doméstico, aplicável a tudo aquilo – gente, bicho e objeto – que trazemos à mão. A vocação para a servilidade da casa foi sendo depurada através dos séculos, por seu uso constante, ela retendo e acumulando a memória das gerações que foram vivendo em seu interior, palco da vida e da morte, das pequenas tragédias, dramas e alegrias. Nossa história, nossos feitos e aflições como seres sedentários confunde-se com a da casa. E não é essa a leitura que dela faz Carlos Drummond de Andrade, a epígrafe deste texto?

Como um rasgo na paisagem de cartão-postal, ocorre a José Bechara que a casa, cansada desse fado monótono, ou porque não pode mais suportar mais reverberações de vida sobre suas paredes, poderia simplesmente regurgitar os móveis que a habitam, despejá-los para fora, ao mesmo tempo impedindo nossa entrada pela obstaculização de suas aberturas. Porta e janelas são bloqueadas por objetos afunilados nos batentes, momentaneamente paralisados. As venezianas se retraem para a saída dos móveis, e cada janela é montada com o apuro de uma pintura vomitada, com o cálculo meticuloso da inclinação de cada peça, dos arcos preguiçosos dos colchões, pés de mesa encavalados, os círculos verdes das banquetas.

Julio Cortázar, em sua narrativa “A casa tomada”, descreve a misteriosa e progressiva ocupação por parte de uma casa sob o ponto de vista de quem vai se vendo desalojado. As portas de salas e quartos vão sendo paulatinamente seladas porque sabe-se que os ambientes atrás delas foram irreversivelmente perdidos. José Bechara, por sua vez, apresenta-nos uma casa que se desocupa com fúria e rapidez. Uma casa que quer se ver livre, sem nada, vazia. Quem sabe queira regressar o mais próximo possível do tempo em que era apenas uma ideia. Um desejo limpo, puro como um cristal, ainda sem os dejetos resultantes da sua convivência conosco.

 

SEM TÍTULO [2006]

Um dos desenhos preparatórios para a série de esculturas Open House, como todos os outros também realizado num papel sulfite branco de 21 x 29,7 cm, traz o esboço executado com caneta esferográfica, a perspectiva axonométrica de dois volumes esquemáticos colados um ao outro, um maior e o outro menor, este situado à frente. Colado com o auxílio de dois pedaços de fita-crepe na lateral visível do desenho vem um pedacinho de fórmica imitando madeira, fixado de modo a acompanhar a diagonal do próprio desenho sobre o papel. Acima do desenho, à direita, duas palavras escritas à mão, uma sobre a outra: “balsa + fórmica”, esta última energicamente sublinhada. Abaixo do desenho, à esquerda, vem a palavra “suspensão”, discretamente sublinhada e, sob ela, a sentença curta e intrigante “O objeto não apazigua”, constatação ou estado a ser perseguido, não se pode saber, mas, de qual- quer modo, um impasse próprio à obra de José Bechara, grandemente fundada em crises, em irrupções de energia que ele percebe e provoca como prova das incessantes transformações a que tudo está submetido.

“balsa + fórmica” indica a decisão sobre o revestimento a ser utilizado para a escultura do qual o desenho é um estudo, uma peça com dimensões da ordem de 40 x 40 x 60 cm, tamanho médio das que foram posteriormente produzidas. O sublinhamento da palavra fórmica sugere certeza, até mesmo o entusiasmo quanto à decisão acerca do material a ser empregado, ênfase ainda mais reforçada com a presença in loco do material. Somando-se os três termos – perspectiva esquemática, sentença e material –, nota-se que o desenho é, efetivamente, etapa importante do processo; um projeto que, como tal, apresenta-nos informações sobre o seu futuro como escultura. Mas não é só isso.

Projeto ou/e expressão, raiz dupla desse desenho e da maioria dos pertencentes a essa série. O desenho em questão contém outras informações que revelam essa sua natureza bifurcada, natureza que contribui para sua singularidade de produto rápido e eficiente do raciocínio espacial. Nesse sentido, chama a atenção a mudança do tipo de perspectiva utilizada pelo artista: existiu uma mais singela, apreensível pelas linhas esmaecidas de uma representação da classe “paralelas oblíquas”, que coloca o objeto num plano ideal; por outra, com ponto de fuga situado à direita, estratégia de representação responsável por trazer o objeto observado para o ponto de vista do observador. Essa opção condiz mais com a natureza do desenho, que não se pretende dotado exclusivamente de precisões técnicas mas também de qualidades expressivas. E para isso contam a descontinuidade das linhas, sua sinuosidade, o fato de que a maioria se justaponha parcialmente, complementando-se umas às outras, o fato de que algumas extremidades tenham acabamento com a forma de um minúsculo laço. Tudo isso é indicativo de uma mão pensante que se deixa levar pela intuição, indo e vindo pelo papel, o que fica especialmente frisado nas hachuras executadas sobre o plano frontal do bloco maior posterior, montado sobre o bloco inferior. Desenho como esquema, como anteprojeto, antevisão sensível, antes que técnica, no que isso quer dizer etapa executiva. Um desenho que se refere ao caráter inacabado, incerto, em trânsito do objeto escultórico que o artista traz em mente. Qual ou o quê seria ele?

 

SÉRIE OPEN HOUSE

Em termos estritamente cronológicos, a série Open House vem depois de A Casa e ao mesmo tempo que Esculturas Gráficas. Em termos formais e semânticos, situa-se na interseção das duas. Nem puro objeto nem puro sólido geométrico que, como já demonstrei nas análises dessas outras séries, são suas marcas características, Open House conserva, de cada uma, justamente o que lhes é diferencial, mas adicionando de modo enfático aspectos da pintura e do desenho. Essa espécie de inquitetude constitutiva da série impede sua definição clara, no que isso quer dizer seu acomodamento nas categorias convencionais, o que serve para reforçar a ideia de José Bechara como um artista que busca a ampliação do campo da arte, propondo obras que não se adequam às suas normas. E aí, como modo de encerrar esse princípio, inclui-se o último e complexo problema: as obras dessa série não são exatamente esculturas; a julgar pela sua aparência e escala, conclui-se sua proximidade de maquetes.

Maquetes e modelos são projetos, versões em escala reduzida de construções maiores, a serem feitas em material compatível com a situação e finalidade a que se destinam. Na qualidade de antecipação, elas, no que se refere ao plano temporal, só existem no futuro e, quanto ao plano espacial, na dimensão das ideias. Por mais mal ou mais bem-acabadas, mais ou menos detalhadas, as maquetes correspondem a uma das etapas preliminares da manifestação de um desejo e, por isso mesmo, por- que são uma resposta a um sentimento de insatisfação, enquadram-se dentro do vas- to território definido pelo conceito de utopia. É bem verdade que a acepção clássica de utopia, em particular aquela que se deixa traduzir a partir de maquetes e desenhos, circunscreve-a duplamente, como crítica às sociedades existentes, devidamente materializados sob a forma de cidades ou edifícios. Em seu estudo sobre o tema, Françoise Choay, comentando o texto seminal de Thomas More, escreve: “Ela [utopia] não vem do nada: por um lado, ela não pertence a uma imaginação arbitrária e ilimitada, mas é meticulosa e sistematicamente construída sobre uma crítica radical e sem concessões da sociedade existente […] da qual ela constitui a antítese.”

O segundo texto dá, um pouco, conta desse aspecto, de um desejo que, não se sabe, animou-o quando da produção do desenho ou surgiu quando ele o realizava. “Suspensão / o objeto não apazigua” tem mais a ver com o estado de espírito do artista ou o “estado de espírito” que ele quer conferir ao objeto? O estado de suspensão teria a ver com o caráter flutuante do esboço, a leveza das linhas definindo um objeto oco, leve, ou com seu caráter ainda indefinido? Quanto a “objeto não apazigua”, ademais do estado de espírito comentado, sua inquietude de algum modo se revela na constituição fina e fluida, nas linhas desconjuntadas, frouxas, nas bordas dos limites que separam a união da dissolução.

A presença dos dois textos escritos à mão não apenas os coloca, eles próprios, como desenhos como também como signos abstratos que embutem novos predica- dos no signo icônico, a composição geométrica: o primeiro texto resolve-se como instrução sobre o modo como ele comanda o que será executado, dispõe sobre o objeto futuro que dele se desdobrará; o segundo, sinalizando uma sua qualidade interna, secreta e intemporal, enuncia uma latência que jamais se resolverá e que está contida ali mesmo, no plano de papel emoldurado e fixado na parede.

Ora, as “maquetes” de José Bechara não se alinham nessa ordem de proposta, embora simultaneamente referidas ao plano ideal – cubos cheios e vazados – e ao plano real – objetos, como cadeiras, mesas, estantes e escadas –, não se insurgem no estado das coisas no presente, não se propõem a remediá-lo ou corrigi-lo pois, afinal, são obras de arte, resolvem-se ali mesmo, pousadas sobre o chão ou sobre mesas pintadas de branco, o que lhes eleva as cores e as texturas, enfatizando sua potência de coisas enigmáticas, conquistando nossa atenção graças à sua estranheza, sua irredutibilidade às coisas do mundo. Procedendo desse modo, separam-se da utopia, pois enquanto essa fecunda o presente pela presença de uma construção plausível, as Open House deslumbra-nos na medida em que nos coloca diante de algo impossível de ser capturado pelas palavras, ao menos por aquelas conhecidas ou simplesmente desgastadas por um uso continuado e automático.

Como já foi mencionado, Open House descende de A Casa, trabalho que derivou de uma situação – a residência artística Faxinal das Artes, ocorrida num antigo assentamento urbano em Faxinal do Céu, interior do Paraná –, cuja excepcionalidade levou-o ao fabrico de uma resposta fora dos padrões em que habitualmente ele, até aquele momento exclusivamente pintor, operava (o leitor deverá remeter-se ao texto Instalação 2 – A Casa). Já disse um filósofo que a diferença entre a moradia de uma abelha, os favos perfeitamente regulares de uma colmeia, e a pior casa feita pelo homem reside no fato de que a abelha, comandada exclusivamente por seu instinto, só sabe e só pode construir um mesmo tipo de casa, com um mesmo material, enquanto o homem leva consigo, em seu espírito, a ideia de casa, a noção de abrigo, materializando-a de acordo com os materiais e as condições que ele encontrar. Por sua vez, se é fato que a noção de abrigo pode adequar-se ao espaço de uma caverna, a casa, particularmente a ocidental, nos moldes arquetípicos em que a pensou Joseph Rykwert em seu texto A casa de Adão no paraíso, encontra sua síntese perfeita no volume de um paralelepípedo ou de um cubo igualmente encimados por dois planos formando uma dobra, vale dizer, encontra na geometria sua redução mais estrita, o ponto de partida de infinitas casas, como aquela em que José Bechara realizou a intervenção que de certa forma abriu a perspectiva de sua poética.

O cubo/ideia como célula-mater das casas. O interesse em colocar em discus- são o limiar existente entre real e ideal, como também debater sobre a relação entre o objeto e a representação do objeto, foi o que levou José Bechara, em sua exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 2004, intitulada A Casa, a ocupar o salão monumental daquele museu não com uma réplica do chalé utilizado no Faxinal das Artes. Embora factível, pareceu-lhe falso deslocar a casa do seu sítio de origem, até porque seria, no máximo, uma réplica. Melhor a construção em escala real de um embrião de maquete, a materialização literal de uma ideia, tão aparentemente absurda quanto a parábola de Jorge Luis Borges Del rigor en la ciencia, sobre um império no qual a arte da cartografia havia atingido um tal nível de depuração que os cartógrafos se impuseram a discutível tarefa de realizar um mapa do império que “tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele”. Mas não é fato que as representações dos objetos sob a forma de desenhos projetuais efetivamente se materializam? As casas e cidades não são também as representações que as geraram? Não é por outro motivo que Richard Smithson em um trecho do seu Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey, comenta que está andando sobre um mapa e que “a qualquer momento meus pés atravessariam o piso de papelão”. E segundo nosso artista, se é possível que as ruas da nossa cidade sejam mapas, porque não seria pos- sível deduzir o mesmo dos desenhos e manchas produzidos pelas intempéries nas super!cies das lonas que ele assume como sendo pintura?

José Bechara cria cubos que são objetos, sólidos geométricos que são coisas e, dotados de vida que são, estão como que esparramados, deslocados em posições des- confortáveis, comprometidos na estabilidade que tanto divulgam como seu principal predicado. Submersos na vida que estão, vomitam miniaturas de cadeiras, mesas, estantes e escadas, objetos cotidianos que se vão amontoando atabalhoadamente, isto porque o oco que os habita não é um volume cúbico sem qualidades, espaço isotrópico, abstrato. É caixa pulsante, útero que expele os objetos feitos de acordo com as nossas proporções, com os quais nos rodeamos e com os quais contamos para mitigar nossa doída solidão.

Os cubos estão, de fato, enredados na vida e, de figuras mentadas, precisas, puras como cristais, agora têm a pele áspera ou fortemente colorida. E são justamente os cubos vazados, os cubos recuados ao desenho de suas arestas, em princípio mais gráficos, abstratos e geométricos, orgulhosos no seu alheamento do mundo, que ganham os vermelhos, verdes e roxos mais fortes. É neles, onde a cor se alardeia, que percebemos o quanto é ela, pura, da cor de um material ou, ainda, resultado de uma oxidação, que comanda o processo, o que é o mesmo que reconhecer o quanto José Bechara continua sendo pintor mesmo quando leva a pintura para longe dela mesma, aproximando-a de outras linguagens. Como fica claro em obras como Fantástica e Miss São Paulo, ambas divididas em quatro cores, as aberturas por onde jorram os objetos são fendas abertas no cubo, sólido geométrico emblema da razão, tradução do número 6, designado “número perfeito”, por onde escorrem fontes de cor. E uma cor, convém sempre lembrar, antes de representar algo, apresenta-se como algo concreto, tangível, verdadeiro e irredutível como o ar, a água, a terra e o fogo.